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OS IMUNDOS TEMPOS DA DOENÇA – PARTE I

A ignorância como peste

Durante vários milénios, as doenças e as epidemias não tiveram uma explicação científica. Somente a partir da invenção do microscópio, no fim do século XVII, e sobretudo com o avanço dos conhecimentos na área da medicina, se pôde relacionar certas doenças com determinados micro-organismos, e se conseguiu desvendar o papel determinante de vetores e hospedeiros, como os ratos e diversos insetos, na sua propagação. É certo que, desde muito cedo, de modo mais empírico do que científico, se conhecia a evidência dos contágios, mas desconhecia-se como se desencadeavam ou processavam, e quais as razões para que cessassem. 

Ao longo da História muitas vezes os fenómenos cósmicos – como o surgimento de cometas e eclipses, ou ainda a posição dos astros – eram olhados como causas, ou pelo menos como prenunciadores, de muitas catástrofes ditas naturais, como secas, inundações, terramotos e epidemias, até mesmo pela comunidade dita científica. Por exemplo, ainda na Idade Média, a Faculdade de Medicina de Paris concluiu ter sido a conjugação de Saturno, Júpiter e Marte, ocorrida no signo Peixes a 24 de março de 1345, que esteve na origem da Peste Negra. Obviamente, essa relação só foi estabelecida pelos médicos após a epidemia estar no seu auge. Nessas épocas remotas – embora não muito, pois sucedeu até ao século XVIII, de uma forma quase generalizada –, estas causas eram consideradas «cientificamente» indesmentíveis. Além disso, em muitos casos, o medo e a superstição, decorrentes dessa ignorância, levavam as religiões a atribuir a Deus, ou aos deuses, a origem dos flagelos naturais, incluindo as epidemias. E em alguns países, e em certas ocasiões, sobretudo fações mais ortodoxas da todo-poderosa Igreja Católica até consideravam ser uma profanação aplicar-se qualquer arcaico medicamento a um doente, porquanto essa ação poderia ser vista como uma tentativa de obstaculizar um desígnio divino. 

De facto, por mais absurdas que estas teses possam hoje parecer, até ao Iluminismo, no século XVIII, a vida e a morte, a doença e a saúde eram vistas como estados determinados em exclusivo pela vontade divina. Mesmo no mais desenvolvido Velho Continente, poucos eram os que contestavam abertamente as interpretações da Igreja em relação aos mais comezinhos aspetos do quotidiano – em tudo, ou quase tudo, se seguiam as orientações da Bíblia, que era interpretada de uma forma literal e inapelável. 

E aí, com efeito, as epidemias causadas por vontade divina são abundantíssimas. Basta recordar os episódios bíblicos protagonizados por Moisés: as sucessivas pragas de rãs, moscas e gafanhotos, «as úlceras com erupções de pústulas» e a morte dos primogénitos egípcios – tudo isto, segundo a Bíblia, foi causado apenas por determinação de Deus para castigar a intransigência do faraó. Em termos de epidemias, no Livro de Samuel, integrado no Antigo Testamento, salientam-se os «tumores pestíferos» que atingiram os filisteus. Apesar de, no relato bíblico, se inferir que esta peste, que se espalhou por várias cidades, foi desencadeada por uma praga de ratos, a interpretação teológica não deixava margem para dúvidas: os filisteus sofreram um castigo divino porque adoravam um deus pagão e roubaram a Arca do Senhor aos israelitas. E muitos outros episódios similares surgem relatados na Bíblia, sobretudo no Antigo Testamento. 

Por estes motivos, em tempos remotos, aquando da eclosão de epidemias, mais depressa se apelava à misericórdia divina do que se tomavam medidas profiláticas ou sanitárias, apelando-se com rogativas a diversos santos, sobretudo a São Miguel Arcanjo, Santo Adriano, Santo Onofre, Santo Antão, Santa Bárbara e São Cristóvão. E os médicos, se bem que ainda com parcos conhecimentos, eram muitas vezes preteridos, em favor das procissões e missas. Com efeito, em Portugal, foram escassos os médicos que, até ao século XIX, tentaram remar contra esta maré de ignorância. Destes, destacam-se Pedro Hispano, no século XIII – que até se tornaria o único papa português, sob o nome de João XXI –, Amato Lusitano, no século XVI – embora tenha exercido a sua profissão no estrangeiro, por causa das perseguições aos judeus –, e Ribeiro Sanches, no século XVIII – outro judeu que teve de fugir do Santo Ofício, vivendo parte da vida no estrangeiro –, que, logo após o terramoto de Lisboa, escreveu a obra Tratado da Conservação da Saúde dos Povos. Em suma, julgava-se que as doenças se curavam mais depressa por milagre do que por um médico; e que uma vida de fervor religioso tinha mais hipóteses de se manter do que outra que tinha cuidados de higiene. E isso era a opinião da cúpula da Igreja, especialmente durante a Idade Média. Por exemplo, o papa Inocêncio III e muitos dos seus sucessores chegaram a ordenar aos médicos, sob pena de aplicação de graves castigos, para que advertissem os enfermos da necessidade de se confessarem; se isso não sucedesse ao fim de três dias, não poderiam continuar as visitas. Em pleno Renascimento, essas orientações ainda estavam em vigor em Portugal. Nas Constituições do Bispado de Coimbra, publicadas inicialmente em 1548, exigiu-se que os médicos, sob ameaça de excomunhão, obrigassem os doentes a se confessarem. Se a confissão continuasse em falta até ao terceiro dia, o bispo era taxativo sobre a sorte do enfermo: «Mandamos que o não curem, nem visitem.». 

Esta surpreendente postura manter-se-ia, em Portugal, até meados do século XIX. Numa biografia publicada no ano 1830 em louvor de Santo António, são evocados de forma enfática, e como verídicos, os supostos milagres obrados, séculos antes, durante o enterro do taumaturgo português: «Neste próprio dia, sem esperarem outro, foram trazidos ao jazigo do Santo cópia de enfermos atacados de várias moléstias, que pelos méritos de Santo António foram restituídos em continente à sua antiga saúde. Tão depressa qualquer enfermo tocasse no féretro ou caixão, como era o folgar imediatamente de se ver são de toda e qualquer moléstia que padecesse. Aqueles porém que, em razão do excessivo concurso, não podiam avizinhar-se do caixão, sendo conduzidos para fora do pórtico da Igreja, aí mesmo à vista de todos eram curados; aí com efeito é que realmente foram abertos os olhos dos cegos; aí se desembaraçou o ouvir aos surdos; aí o coxo saltava, como se fosse um gamo; aí soltando-se a língua dos mudos, entoavam com toda a clareza e velocidade os Divinos louvores; aí os membros, defecados de paralisia, se tornavam assaz vigorosos para encherem as suas antigas funções; aí as corcovas, a gota, a febre e outras várias pestes de enfermidades desaparecem milagrosamente, e os favores do Céu são outorgados aos fiéis a pedir de boca; aí todas as pessoas de ambos os sexos, que concorrem das diversas partes do mundo, conseguem o despacho favorável de suas rogativas.». 

Neste contexto histórico, em que a vida tinha um valor muito relativo, a ação dos médicos esteve sempre bastante condicionada quer pelos atrasos nos conhecimentos de epidemiologia e profilaxia, quer pela postura da Igreja. Por exemplo, em 1858, no rescaldo de um surto de febre-amarela, o padre José de Sousa Amado, professor no Liceu Nacional de Lisboa, publicou uma obra sugestivamente intitulada Cautela com os Médicos, zurzindo contra aqueles que tentaram curar sem requerer, desde a primeira visita, os sacramentos religiosos para os enfermos. «As notícias que até hoje temos podido obter a respeito dos sete ou oito mil mortos da febre», escreveu ele, «são todas em sentido desfavorável aos direitos da Igreja: isto é, que a maior parte deles morreram sem sacramentos. Sendo assim, como é de crer que fosse, de quem é a culpa senão dos médicos ateus, imorais e materialistas? Destes algozes das almas que não quiseram, sequer por decência e para honra da sua classe, aconselhar-lhes os deveres religiosos, e por este meio concorrer para livrá-las da infelicidade eterna!». 

Sendo matéria polémica, e que foge a este âmbito, discutir qual o papel que a religião teve no condicionamento dos avanços científicos, certo é que a medicina estagnou, séculos sem fim, desde os tempos da Grécia Antiga. Na Idade Média ainda se mantinham muito enraizados os ensinamentos de Galeno e de Hipócrates, que consideravam que na origem das doenças estavam simples desequilíbrios entre as qualidades primárias (quente, frio, seco e húmido), os quatro elementos (ar, água, terra e fogo) e os quatro humores (sangue, bílis, muco nasal e bílis negra). Ou seja, estava longe de se imaginar que a esmagadora maioria das doenças provinha apenas de causas naturais, muitas das quais invisíveis ao olho humano. E, por regra, nunca se associavam as maleitas aos ambientes insalubres. 

Durante séculos, para todo e qualquer tipo de doença, os arcaicos médicos aplicavam, geralmente, sangrias aos enfermos – que mais os debilitavam – ou davam-lhes purgas, xaropes e mistelas diversas, que tantas vezes causavam piores males e nenhum bem. Aquando das epidemias, para contrariar as supostas emanações pestilentas no ar ambiente – que se considerava estar na origem dos contágios e que, em certa medida, podemos associar à decomposição do lixo –, usavam-se meios de duvidosa eficácia, como soluções de vinagre, perfumes, ervas odoríferas queimadas e até tiros de pólvora. É certo que ao longo dos tempos houve médicos que tentaram, embora de forma empírica, tomar medidas de saúde preventiva através da criação de lazaretos, do isolamento dos doentes ou do entaipamento das casas dos pestosos. Porém, eram casos pontuais e de fraca eficácia. Na verdade, somente na segunda metade do século XIX se desvendaria que, em grande medida, muitas das doenças infecto-contagiosas proliferavam por causa das péssimas condições sanitárias, com o lixo à cabeça, e da inexistência de medidas profiláticas.

Pedro Almeida Vieira

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