Segunda-feira, Outubro 2, 2023
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OS IMUNDOS TEMPOS DA DOENÇA – PARTE II

O inferno das epidemias 

Mesmo nas sociedades mais civilizadas da Antiguidade, e até ao século XX em grande parte das regiões do mundo, as ruas não primavam pela limpeza. A pavimentação das vias públicas só muito tardiamente se foi generalizando, mesmo nas principais cidades europeias. Os esgotos – embora em pequeno volume, pois a água disponível para consumo era bastante reduzida – acabavam despejados nas ruas, com exceção de alguns edifícios que possuíam latrinas. O lixo, os excrementos e os cadáveres de animais eram, por regra, depositados em esterqueiras, em lugares ermos, mas por vezes demasiados próximos dos aglomerados populacionais, nas praias ou nos rios, transportados por escravos ou em carroças. Em muitos casos eram simplesmente despejados nas vias públicas ou em zonas contíguas das habitações, que só eram «limpas» pela chuva, acabando por se amontoarem nas zonas mais baixas. Nas casas, os víveres «conviviam», muitas vezes, com animais nocivos, como ratos e pulgas, e os armazéns e as zonas portuárias eram locais onde abundava uma imensidão de lixo. 

Neste cenário, compreende-se assim que as doenças, em geral, e as epidemias, em particular – tanto como as guerras, e mesmo mais do que as catástrofes naturais –, tenham causado profundas convulsões sociais em séculos passados. Perante os parcos conhecimentos médicos e a proliferação de lixo, excrementos e animais nocivos, a doença e a morte pairavam a cada esquina. Se se atender à esperança média de vida ao longo dos tempos, fica-se com a noção perfeita desses impactos: até ao século XVII era de apenas 30 anos na Europa, e em Portugal foi necessário chegar-se ao século XX para se ultrapassar a fasquia dos 40 anos. É certo que são conhecidas pessoas que chegavam a provectas idades, mas a esmagadora maioria morria bastante cedo ou era afetada, ao longo da vida, por maleitas que hoje necessitariam apenas de um simples e eficaz medicamento, ou nem sequer ocorreriam caso se aplicassem elementares medidas de política sanitária.

Em grande medida, a baixa esperança média de vida era então fortemente influenciada pela elevadíssima taxa de mortalidade infantil. De acordo com diversos estudos, estima-se que, no século XVIII, apenas metade das crianças atingiam os 15 anos e cerca de 30% morriam antes de completar o primeiro ano. Além da inépcia das parteiras, os recém-nascidos ficavam à mercê de um vasto conjunto de doenças que lhes eram, na generalidade, fatais, como a disenteria, a varíola, a difteria, a tosse convulsa, a varicela, a papeira e o sarampo. Em séculos mais remotos, esta situação ainda era pior, atingindo mesmo as classes mais favorecidas. Por exemplo, no século XVI, dos 10 filhos do rei D. João III, quatro morreram com menos de um ano, outros três não chegaram aos 10 anos e nenhum ultrapassou os 22 anos. 

Embora não haja muitos registos sobre as pestes na Antiguidade, anteriores à era cristã, sabe-se que a primeira que atingiu uma vasta população ocorreu em Atenas, entre os anos 430 e 425 a.C. Descrita por Tucídides na História da Guerra do Peloponeso, esta epidemia registou os seus primeiros focos na Etiópia, disseminando-se depois para o Egito até atingir gravemente a zona de Porto Pireu. Julga-se que Hipócrates, considerado o pai da medicina, terá intervindo nesta epidemia, por estar a viver em Tessália. Há dúvidas sobre que doença terá atingido os atenienses, mas pela descrição dos sintomas não seria peste bubónica, havendo historiadores que se inclinam para a hipótese de tifo, dengue ou varíola, ou outra que tenha, entretanto, desaparecido. Por causa desta peste terá perecido cerca de um terço da população ateniense, incluindo Péricles, um dos grandes estadistas da Grécia Antiga. A doença, segundo os relatos de Tucídedes, «atacava repentinamente em plena saúde», tendo este cronista acrescentado que «o flagelo grassava numa desordem completa; no momento da morte, corpos jaziam uns sobre os outros; outros havia que se revolviam sobre a terra, meio mortos, em todos os caminhos e em direcção a todos as fontes, movidos pelo desejo de água. Os lugares sagrados onde se acampava estavam juncados de cadáveres, pois morria-se no mesmo sítio». Com a morte a espreitar, a anarquia instalou-se, com pilhagens, assassínios e a completa corrupção moral. 

Menos de um século depois ficou célebre a peste de Siracusa, ocorrida no ano 396 a.C., trazida pelo exército cartaginês que sitiou aquela região. A mortandade entre os invasores – atingidos por febres, tumefação do pescoço e dores nas costas seguidas de disenteria e erupção pustulosa no corpo – foi de tal monta que os romanos venceram essa batalha quase sem guerrear. 

No seio do Império Romano, mesmo sabendo-se que eram tomadas algumas medidas em prol do saneamento básico, há registos de diversas epidemias. No ano 166, Roma sofreu uma terrível peste, que se estendeu por toda a península itálica, tendo apenas cessado em definitivo cerca de três décadas depois. Entre as vítimas mortais estava o próprio imperador Marco Aurélio. Contemporânea de Galeno, esta peste foi descrita com detalhe por este célebre médico. Os sintomas das vítimas iam do ardor inflamatório nos olhos e vermelhidão da cavidade bucal e da língua até aversão pelos alimentos, sede inextinguível, ausência de febre mas com sensação de abrasamento interior, tosse violenta e rouquidão, fetidez do hálito e erupção geral de pústulas. Seguiam-se ulcerações, vómitos e diarreias, gangrenas parciais e separação espontânea dos órgãos mortificados e perturbações mentais. Regra geral, a morte sucedia entre o sétimo e o nono dia. 

No século seguinte, o Império Romano foi novamente fustigado por nova peste, oriunda do Egito. Tendo-se espalhado rapidamente pela Grécia, norte da África e península itálica, consta que em Roma e em diversas cidades da Grécia morreram cerca de 5000 pessoas por dia, no auge da epidemia. 

A primeira grande pandemia europeia, já bastante bem documentada, surgiu no século VI, durante o império de Justiniano. Identificada como peste bubónica, teve início no ano 542 na antiga cidade egípcia de Pelusia, junto às margens do Nilo, e prolongar-se-ia por mais de cinco décadas, com vários surtos e focos de disseminação. Através de viajantes, atingiu a cidade de Alexandria e vastas zonas do norte de África, transpondo depois o Mediterrâneo até assolar a Europa. Estima-se que tenha causado cerca de 100 milhões de mortes. Alguns focos dariam ainda origem, décadas mais tarde, a mortandades na Grã-Bretanha, entre os anos 664 e 684, e em Roma, no ano 690. 

Durante cerca de sete séculos, os cronistas deixaram de registar novas epidemias, embora obviamente as doenças infecto-contagiosas continuassem a prevalecer em pequenos núcleos. Esse longo período de «hibernação» transmitiu assim uma enganadora sensação de segurança e, com isso, se descuraram as questões relacionadas com o lixo e a salubridade. Um erro que sairia caro. 

Em 1322, na região da bacia do Yamuna, um tributário do grande rio Ganges, entre Deli e Agra, surgiria um foco epidémico de peste bubónica, por via de contágios aquando de uma peregrinação religiosa. Da zona de Mutra, caravanas de mercadores foram depois disseminando a doença por terra ao longo da Ásia. No fim dos anos 30 desse século, os focos da peste atingiram a Ásia central soviética e uma década depois chegaram à região da península da Crimeia e do mar Negro. A partir daí, por terra e mar, a doença foi evoluindo em área afetada. E, através destas duas vias, a peste estava, nos finais de 1346, às portas da Europa. 

Tudo indica que os genoveses que defendiam um entreposto comercial junto ao mar Negro, em Caffa, na Crimeia, foram os primeiros europeus a serem flagelados pela Peste Negra. Dizimados pela doença, as tropas tártaras que assediavam o entreposto viram-se obrigadas levantar o cerco, mas antes catapultaram por cima das muralhas alguns cadáveres de pestíferos. Foi esta «guerra biológica» que originaria a primeira contaminação de europeus, que culminaria na invasão da epidemia no Velho Continente. Em finais de 1347 já Constantinopla tinha sido tragicamente afetada; pouco depois, navios genoveses, com parte da tripulação morta e a restante em estado lastimoso, contaminaram Messina e a Sicília, bem como muitos outros portos gregos e da península itálica. Num ápice, todas as zonas costeiras europeias ficaram infetadas: em abril de 1348 a doença entrou nas Baleares, no mês seguinte em Valência e Barcelona, e em julho, através do porto francês de Calais, alcançou a Inglaterra. 

Ao território português, a Peste Negra chegaria em meados de 1348 e manter-se-ia a ceifar vidas na Europa até 1352, embora nas décadas seguintes tenham continuado a eclodir pequenos surtos. As estimativas mais precisas sobre a mortandade desta terrível pandemia apontam para cerca de 30 milhões de vítimas mortais na Europa e 25 milhões na Ásia. 

Apesar de trazida por humanos, da Índia até à Europa, a propagação inicial da Peste Negra esteve associada sobretudo aos ratos selvagens e ratazanas, que invadiram aglomerados urbanos. As pulgas desses roedores, que encontraram comida abundante no lixo e nos alimentos, serviam de hospedeiros à Yersinia pestis. Este bacilo só viria a ser identificado em finais do século XIX, pelo franco-suíço Alexandre Yersin. Note-se que a denominação Peste Negra não proveio da elevada mortalidade causada nem da localização do primeiro contágio aos europeus, mas sim dos sintomas que afetavam as vítimas. A zona picada pela pulga ficava com uma marca negra e surgiam depois bubões – inflamações dos gânglios, daí advindo a denominação de peste bubónica –, a que se sucediam outras afeções com grande grau mortífero. Apesar de as pulgas hospedeiras do bacilo serem de uma espécie distinta das que geralmente parasitam os ratos domésticos e o homem, acabaram por os atacar quando os ratos-hospedeiros morriam contaminados pelas bactérias. 

De roedor para roedor, de homem para homem, a Peste Negra tornou-se ainda mais contagiosa por via dos fracos hábitos de higiene e das deploráveis condições de salubridade da época, além das graves carências alimentares que afetavam a Europa por essa altura. A agravar, surgiram duas variantes desta doença – sanguínea e pulmonar –, que a tornaram mais letal. Nestes casos, o contágio processava-se através da saliva, causando mortes fulminantes, em parte devido a incorretas práticas médicas. Por exemplo, nos hospitais era bastante comum misturarem- -se, na mesma cama, doentes pestíferos com pessoas sofrendo de outras maleitas. Durante a Peste Negra, muitos dos moribundos, bem como cadáveres, mantiveram-se insepultos nas ruas durante dias, incrementando o risco de outras doenças. Mais, a fuga de pessoas assintomáticas de zonas afectadas para outros locais desencadearam uma maior e mais rápida disseminação. 

No entanto, naquela época, os ratos e as pulgas, bem como a proliferação de lixo, não foram apontados como a causa da epidemia nem dos contágios. No caso dos ratos, é certo que surgem representados na iconografia – como os gatos ao lado dos doentes –, mas mais por razões simbólicas: no primeiro caso por se considerar serem prenunciadores da epidemia; e, em relação aos gatos, por se julgar que eram protetores da vida. De facto, além de se acreditar que o contágio provinha das emanações do ar, de origem desconhecida, considerava-se que a transmissão se fazia através dos olhos dos enfermos – e não a partir da saliva, ou de outras excreções corporais, e muito menos das picadas de pulgas. Nessa época, a «convivência» dos humanos com ectoparasitas – como as pulgas e os piolhos – e com endoparasitas – como as lombrigas e a ténias – era banal, mesmo entre as classes mais abastadas. 

Por estes motivos, durante a Peste Negra, tal como ocorrera noutros casos de epidemias, a intervenção da medicina mostrou-se bastante ineficaz e as medidas públicas de controlo dos contágios não resultaram, porquanto se optou por soluções ineficazes, como as fogueiras nas ruas e até salvas de artilharia ou música, pois julgava-se que as vibrações afastariam o ar corrupto. Foram usados ainda outros métodos de «protecção», entre os quais pequenas caixas pendentes no nariz com soluções de vinagre. Alguns médicos utilizavam, quando visitavam os pestíferos, máscaras especiais, mas mais imbuídas de simbolismo místico – tendo um longo bico, como o dos corvos – do que por serem protetoras de contágios. Era também usual colocarem-se bodes nos quartos dos doentes, julgando que assim afastariam os ares pestíferos. Deste uso adveio um fator não intencional: estes animais atraíam, para si, as pulgas transmissoras da peste. 

Um outro efeito social marcante da Peste Negra, para além de incrementar ainda mais o caos sanitário – foi o exacerbamento do fervor religioso, que atingiu níveis de irracional fanatismo. De início, promoveram-se procissões e orações públicas, rogando misericórdia divina, por intercessão dos santos. Organizaram-se depois comitivas que cirandavam pelos povoados exortando ao arrependimento. Os mais conhecidos destes grupos foram os flagelantes, que em peregrinação, nus da cintura para cima, se disciplinavam com cordas e chicotes durante 33 dias, entoando cânticos religiosos e práticas diversas. Segundo consta, estes fanáticos peregrinos foram, ironicamente, um dos veículos mais importantes da difusão da epidemia em muitas regiões, até que uma bula papal, em 1349, proibiu as suas atividades. 

Pior sorte teve a comunidade judaica que, em algumas regiões, foi acusada de ser causadora das mortandades nos povos cristãos, supostamente por andarem a confecionar venenos pestíferos, à base de aranhas e outros animais peçonhentos, que lançariam para os poços e rios. As consequentes perseguições – mescladas de interesses económicos – atingiram o seu auge na região de Languedoc, no sul da França, na Alemanha e no reino de Aragão – que se estendia pela península itálica –, levando à fogueira milhares de judeus e lançando tanto terror na Europa como a doença. Somente na Polónia, Inglaterra e em Portugal não se registaram execuções de judeus durante a Peste Negra.

Pedro Almeida Vieira

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