Santana Castilho | Professor do Ensino Superior
Desde que o Governo determinou a situação de alerta, o pânico foi alastrando e contagiando boa parte dos portugueses. Nesta onda de mata e esfola, cresceu o apoio a medidas mais drásticas e já vamos no nono estado de emergência. Porém, à democracia do medo (que tanto nos pode confrontar com o melhor como com o pior dos comportamentos cívicos), incentivada agora por muitos dos que foram imolando o SNS no altar da austeridade, preferia a democracia da serenidade fundamentada e bem comunicada.
Cruzam-se decisões pouco fundamentadas com análises em cascata, criteriosas umas, simplesmente especulativas ou descuidadas outras, tudo contribuindo para a banalização do medo e escancarando portas a iniciativas, eventual e desnecessariamente atentatórias de responsabilidades partilhadas e de direitos e liberdades. Para dominar o contágio não chega a higiene sanitária. Precisamos, também, de higiene social, para simplesmente não enclausurarmos toda a vida.Com o medo de ficarmos contaminados ou a angústia de vermos adoecer familiares e amigos, esquecemos rápido o vírus da xenofobia desumana que se abateu sobre milhares de refugiados, que continuam a fugir da guerra e da fome, sem pão nem amor, vindos não importa donde. É em momentos como este que a solidariedade incondicional deve ser reiterada.
Muitas doenças, evitáveis ou pelo menos substancialmente retardáveis por alteração de comportamentos ou estilos de vida, entram naquilo que aceitamos (erradamente) como determinismos do nosso existir. As mortes que provocam (porque dispersas no nosso desconhecimento da sua existência), numericamente bem mais significativas do que as que esta pandemia vai causar, não nos afligem como este confronto inesperado com a nossa fragilidade, para mais sujeito a uma mediatização, que tanto informa validamente, como agita o medo desnecessariamente.
Na longa vida que já levo, não guardo memória de uma hecatombe assim. Nunca vi uma travagem da economia tão generalizada e um pânico social tão ampliado. Por isso, aflige-me não sabermos quando acabará a prisão preventiva da sociedade inteira. Embora a atmosfera actual esteja dominada por uma certa ideologia comportamental, seja opressiva e reaja mal a opiniões sem máscara, afirmo que não teria parado a economia deste modo, muito menos teria alimentado o medo desta maneira.
A opinião pública está hoje fortemente condicionada para aceitar um só ângulo de observação da pandemia. O receio deu lugar ao medo e o medo abriu a porta ao pânico, desproporcionado face a outras patologias e a outros males que assolam o mundo. As bolas de cristal foram substituídas por modelos matemáticos, que protagonizaram cenários em que, a breve trecho, teríamos mais infectados que população existente. O dilúvio noticioso sobre a covid-19 superou largamente a alienação de outras ondas mediáticas (futebol, incêndios, calamidades climáticas). Os noticiários são massacrantes e repetem ad nauseam quadros de desgraça. Perplexo, pergunto-me como é possível que equipas de reportagem, atropelando a privacidade e a dignidade mínima dos prostrados nos cuidados intensivos, filmem o que o decoro e a protecção de dados interdita.
Dia após dia, os mais populares pivots das nossas televisões descodificam gráficos mágicos, com as antevisões dos penúltimos dias da humanidade. No fim dos noticiários asfixiantes, paramentam-se de sacerdotes da esperança e catequizam-nos com uma longa e poética homilia de boas condutas. Aos velhos foram aplicadas duas penas: aos que vivem em lares, a crueldade da solidão imposta; aos que lá não estão, a discriminação, como cidadãos de segunda. Não é aceitável que o Estado, que legalizou a eutanásia, decida retirar aos velhos o direito de continuarem a ver os filhos e os netos, se entenderem correr o risco. Considero isto uma infantilização dos velhos, uma interrupção da democracia, um paternalismo que dispenso, um desrespeito pelo direito ao “convívio familiar” e à “autonomia pessoal”, que a Constituição expressamente consigna (Artº 72º). Perante os números que documentam esta pandemia, o mundo parece ter esquecido que morrem por ano 10 milhões com cancro. Que em 2018 morreram 200 mil crianças com tuberculose e 300 mil com malária.
Vejo com enorme preocupação que se comece a falar em certificados de vacinação, escabrosa ideia que nos ofereceria mais uma repugnante divisão social: cidadãos puros, devidamente munidos de passaporte de sanidade, e párias impuros, sem direito ao novo papel selado. O que é que isto nos recorda? Em tempo de restrições como nunca tivemos depois de Abril, a liberdade é o valor maior que me apetece invocar, num país sob uma autofágica polarização: os que querem permanecer fechados, encurralados pelo pânico, e os que, embora reconhecendo a gravidade da situação, sacodem cabrestos e discriminações que julgavam afastadas.
São livres os portugueses presos em lares miseráveis, que não percebem porque lhes desapareceram filhos e netos? Não é um défice de liberdade a falta de conhecimento para interpretar com serenidade o fenómeno que nos atormenta? São hoje livres os milhares de portugueses que ficaram ontem sem emprego? Os que já viviam na fronteira da sobrevivência e hoje desesperam, esses, são livres? Porque não tenho senhores e penso livremente, ouso perguntar ainda: será que um estado de emergência nove vezes repetido, com tão pequeno questionamento e tão generalizada aceitação, pode ser socialmente havido como um resquício da ditadura de que Abril nos livrou? Como aceitar, sem enorme perplexidade, os delatores que a covid-19 destapou? Antes, a PIDE zelava pela ordem que o Estado Novo determinava e a censura amordaçava-nos. Hoje há quem defenda certificados de imunidade e a georreferenciação das pessoas, enquanto, sofredores, resignados, confinados, de máscara posta, adoecemos mentalmente.
Vão-me dizendo que as decisões políticas são tomadas depois de ouvir os especialistas. Mas há especialistas que não são ouvidos. Não são ouvidos os virologistas e os epidemiologistas que pensam a contrario sensu dos que são seguidos por Marcelo e Costa, muito menos são ouvidos outros especialistas, de outras áreas (psicólogos sociais e psiquiatras, por exemplo), que poderiam complementar o saber médico e epidemiológico e explicar as consequências do autêntico assédio moral que tem sido exercido sobre os mais velhos, ou a influência depressiva do massacre noticioso dos telejornais, sobre toda a população. Uma grande parte dos portugueses, resignada, deprimida pela campanha da promoção do medo a que foi submetida, parece querer aceitar em silêncio a limitação dos seus direitos. Vive-se, assim, numa cidadania apenas simbólica, tutelada pela polícia e pela Direcção-Geral da Saúde, que têm agora o monopólio do espaço público. Sente-se, assim, a opressão de uma espécie de religião do confinamento, que nos empurra, em rebanho, para a neurose colectiva. À salvação pelo grande confinamento e pela ditadura sanitária, opõe-se uma racionalidade ponderada para combater o vírus. Trata-se da dicotomia entre um risco de infecção e uma morte lenta, mas certa, por catástrofe económica, psíquica e social, sem precedentes.
No que toca à escola, custa-me ver que se aceite tão facilmente trocar relações pessoais por relações digitais, admitindo que a profissionalidade docente possa prescindir do contacto social e da empatia humana. Como se um colectivo de pessoas pudesse ser substituído por um colectivo de computadores, sem perda de humanidade. Tecnólogos e tecnocratas não entendem que a interacção pedagógica exige presença. Professores e alunos sabem e sentem isso. Agora, mais que nunca, interiorizaram, certamente, que uma aula tem múltiplos papéis sociais, que nenhuma máquina substitui.
O medo encerrou os parques infantis ao ar livre, castrando imbecilmente as crianças do direito de brincarem. As múltiplas proibições e obrigações, redefinidas hora-a-hora por catadupas de informações inúteis, incoerentes e contraditórias, são impostas pelas novas brigadas dos costumes sanitários, que despejam álcool-gel na inteligência dos cidadãos, enquanto o vírus comtempla o esplendor da desumanização que os humanos criaram.
A continuarmos assim, não me surpreenderá que eu ainda viva para lutar contra vacinações obrigatórias, impostas a sociedades sem vontade própria e alimentadas por sistemas de ensino meramente utilitários.Vivemos numa sociedade desorientada entre a histeria e o desleixo, perdida no meio de um amontoado de pequenas razões incoerentes, governada por gente que pouco se importa com os danos que o medo impõe. A epifania da liberdade de Abril vai-se diluindo no seio de uma sociedade autoritária, onde, graças ao medo, os cidadãos trocam liberdade por segurança aparente e aceitam que se combata o vírus de pau na mão.As regras opressoras, o controlo dos direitos individuais, a vigilância intrusiva e os abusos do Estado, consentidos por uma cidadania enfraquecida, vão-nos aproximando de novos autoritarismos, com aparência de democracia. Basta que atentemos em acontecimentos recentes:
– A PSP, diligente a responder à denúncia de um bufo anónimo, entrou na Faculdade de Arquitectura da Universidade de Lisboa, interrompeu uma aula e, à porta da sala escancarada para ventilação, multou um professor por, durante uma palestra de quatro horas e meia, ter retirado, por momentos, a máscara que usava.
– A distopia Orwelliana do 1984 aportou à Faculdade de Economia da Universidade Nova de Lisboa em 2020, ano da graça do SARS-CoV-2, sob forma de vigilância omnipresente: coleiras identificadoras em todos os circulantes e seguranças a controlar e delatar quem infrinja as normas sanitárias. Um sistema por pontos sociais, à chinesa, pode levar os prevaricadores à presença do Grande Irmão, desde que não usem uma máscara limpa e seca no campus universitário.
– Numa escola de Rio de Mouro, em Sintra, um aluno foi suspenso das aulas por ter partilhado o lanche com um colega que “tinha fome e não comia nada desde a manhã”. Vejo demasiadas escolas mais preocupadas com máscaras, medidas sanitárias e regras, que com aqueles que as têm de cumprir e fazer cumprir. Com as suas perdas emocionais. Com as suas ansiedades. Com o esmagamento dos padrões de vida democrática. Com o mal-estar colectivo. Afinal, com aquilo que uma escola deve ser e ensinar, particularmente num momento de retorno de múltiplos impulsos autoritários que, a propósito da “guerra” ao vírus, abrem caminho para o êxito de agendas indesejáveis. Gradualmente, o absurdo e a anormalidade vão sendo adoptados como o “novo normal”, por uma sociedade domesticada pelo medo e pela perda do senso comum.
A hipocrisia abunda e enoja: festas com dezenas de jovens são apontadas como focos de contágio, enquanto de milhares de passageiros amontoados às horas de ponta nos meios de transporte se diz não haver indício de surtos; pune-se uma criança que partilha um sumo com colegas, mas celebra-se a singeleza do presidente da República, que divide com outra uma bola de Berlim; proíbem-se uns, inconstitucionalmente, de visitarem os seus mortos, quando outros, aos milhares e sem respeito pelas regras vigentes, se amontoaram em Portimão para ver a Fórmula 1 e foram abençoados pela engraçada Dra. Graça.