As pestes lusitanas
A inexistência de relatos fidedignos não permite apurar, com rigor, os efeitos da Peste Negra em Portugal, que grassou durante poucos meses do ano 1348. Em todo o caso, o seu impacto demográfico deve ter sido semelhante ao que ocorreu na Europa – ou seja, sacrificou pelo menos um terço da população –, desencadeando mesmo uma grave crise social, não apenas pela mortandade, mas porque os sobreviventes, herdando muito bens, abandonaram os seus ofícios. Sabe-se que o rei D. Afonso IV se viu mesmo obrigado a decretar penas severas para quem optasse pela ociosidade, perante o abandono da agricultura e de muitas outras tarefas essenciais ao reino.
Em Portugal, como noutras regiões do mundo, as epidemias continuaram a ocorrer, embora sem atingir as dimensões catastróficas da Peste Negra, conforme se constata na obra Memórias de Epidemiologia Portuguesa, publicada pelo médico António Vieira de Meireles em 1866. Após a grande peste do século XIV, registou-se uma epidemia durante o cerco de Lisboa pelas tropas castelhanas em 1385, que contribuiu muito para refrear os ânimos dos inimigos do Mestre de Avis. Outra também muito grave ocorreu em vésperas da expedição a Ceuta, em 1415, durante o reinado de D. João I, tendo vitimado mesmo a rainha D. Filipa de Lencastre. Consta que esta epidemia, também de peste bubónica, terá chegado através dos navios que vinham auxiliar os portugueses na conquista da costa africana.
Um século e meio mais tarde, já durante o curto reinado de D. Sebastião, Lisboa foi atingida por outro surto epidémico, que registou o seu auge em 1569, obrigando mesmo a corte a refugiar-se em Sintra. A mortandade foi tão elevada na capital que, para se sepultar as vítimas, foi necessário sagrar olivais e praias, pois as mortes, em certos dias, ultrapassaram mais de meio milhar. Na obra Memórias para a História de Portugal, Diogo de Barbosa Machado escreveu que, nessa época, Lisboa ficou «reduzida a deserto, estava coberta de ervas, e se em toda ela se encontravam duas ou três pessoas pareciam, pelos seus semblantes pálidos, mortas, e não vivas». E acrescentaria ainda que «nesta formidável tormenta igualmente naufragaram a robustez dos mancebos como a delicadeza das donzelas, sendo ambos os sexos, e todas as idades violentamente consumidas pelo contágio».
Para lutar contra esta epidemia foram contratados dois famosos médicos castelhanos, que se fartaram de recomendar medidas. No meio de tantas, quase todas empíricas, muitas estavam condenadas ao insucesso – como as habituais queimas de plantas em fogueiras pela cidade, a proibição de fazer exercício ou o encerramento das casas de mancebia. Outras, indiretamente, até trouxeram alguns benefícios, como a desobstrução de ruas, inundadas de lixo, a proibição de os barbeiros terem em casa ou deitarem na rua o sangue «espadanado» das sangrias, e a interdição de «danças, bailes e ajuntamentos de negros». Neste último caso estava subjacente um motivo erróneo: entendia-se que os escravos eram mais propensos a serem agentes de contaminação, por causa do odor natural que exalavam. Em outras medidas, que até trariam benefícios mais efetivos de controlo sanitário, acabou por se ficar aquém do desejável. Por exemplo, foi determinada a queima da roupa dos pestíferos, mas os médicos concordaram que apenas se eliminasse a de menor valor, podendo a outra ser reutilizada, se lavada em água do mar, e depois em água doce e, por fim, em água avinagrada. Aplicaram-se ainda outras medidas que hoje se mostram ridículas, como a recomendação de «trazer pedras preciosas, principalmente esmeraldas e jacintos», de comer uma mistura de figos passados, nozes, folha de arruda e sal. Foi, além disso, proibida a «conversação entre mulheres».
Esta peste disseminar-se-ia tanto para norte como para sul, atingindo com gravidade Santarém e Coimbra e ficando às portas de Évora, supostamente por via da milagrosa proteção da Nossa Senhora da Boa-Fé, segundo os cronistas. Contudo, na verdade, a cidade alentejana foi poupada por causa da interdição da entrada de forasteiros para dentro das muralhas e à expulsão dos mendigos. Os surtos apenas cessaram na primavera de 1570, deixando um saldo de mortos superior a 60 000 pessoas apenas em Lisboa; ou seja, uma mortandade superior à causada pelo terramoto de 1755.
Menos de uma década depois, em 1579, uma nova epidemia assolou Portugal, vinda de outros países europeus, onde eclodira com gravidade alguns anos antes. Suspeita-se que tenha surgido na cidade de Trento, através da venda de roupas de pestíferos, tendo proliferado por via de peregrinos que se deslocaram a Roma por causa do Jubileu. Só na cidade siciliana de Messina terão perecido, segundo as crónicas, 60 000 pessoas, e em Veneza quase 100 000. Num período conturbado da história de Portugal, que culminou na perda da independência em 1580, esta peste constituiu também um importante flagelo demográfico. Em Lisboa terão morrido 40 000 pessoas e mais 25 000 em Évora, atingindo também muitos milhares noutras regiões do país.
Nos últimos anos do século XVI, nova epidemia se declarou em Lisboa, propagando-se rapidamente para norte. Referida por frei Luís de Sousa, esta peste matou, só em Lisboa, mais de 10 000 pessoas, tendo apenas cessado em definitivo em 1602. Tal como noutras epidemias, os portos foram a porta de entrada e, segundo os cronistas, foi importada do norte de África, onde no auge da doença morreram mais de quatro mil pessoas por dia.
Ao longo do século XVII foram-se sucedendo novos surtos epidémicos, tendo um dos mais letais atingido o Algarve entre 1645 e 1651. Com o aumento da navegação para o Brasil, por causa da descoberta das jazidas de ouro e diamantes, Portugal começou também a ser afetado por doenças de origem tropical. Em 1725, Lisboa seria atingida por um grave surto de febre-amarela, que os historiadores daquela época batizaram de cólera ou vómito negro. A doença terá entrado pela zona portuária, disseminando-se depois pelas ruas «aonde as imundícies eram mais contínuas, e delas se levantavam vapores continuados», conforme relataram as crónicas. Ignorando-se, nessa época, a verdadeira forma de transmissão desta doença – sabendo-se hoje que provavelmente, devido a condições meteorológicas particulares, um mosquito português terá «alojado» o vírus –, esta epidemia foi supostamente controlada com um medicamento à base de leite de burra, por recomendação do médico francês Isaac Eliot. Mesmo assim morreram, só em Lisboa, cerca de seis mil pessoas.
As epidemias associadas a condições de insalubridade estenderam-se pelas décadas seguintes e, curiosamente, aumentaram de frequência à medida que se reforçaram as disponibilidades hídricas, uma vez que estas resultavam depois numa maior quantidade de esgotos, que se misturavam com o lixo nas ruas. Segundo os relatos históricos, a cólera e a febre-amarela – doenças que não terão sido muito comuns em séculos anteriores – começaram a causar epidemias ainda durante o século XVIII, atingindo contornos de grande gravidade sobretudo entre as décadas de 30 e 60 do século XIX. O surto de cólera em 1833 causou cerca de 40 000 mortes em todo o país, um terço das quais em Lisboa. Em 1855, uma nova epidemia causou quase nove mil vítimas mortais e, dois anos mais tarde, a febre-amarela afetaria cerca de 17 000 lisboetas, isto é, 5% da população na época, causando quase cinco mil mortes, sobretudo nos bairros populares de Alfama.
Além da cólera e da febre-amarela, passaram a ser frequentes as crises de malária, sobretudo em zonas de arrozais ou com águas estagnadas, e surtos de difteria, febre tifoide e tuberculose. Embora atingissem em particular os habitantes mais pobres, estas doenças chegaram também a causar mortes entre as pessoas das classes mais favorecidas, como foram os casos do rei D. Pedro V – que sucumbiu de febre tifoide, em 1861 – e da sua mulher D. Estefânia – que faleceu de difteria, dois anos antes.
Algumas melhorias profiláticas que foram sendo implementadas, nomeadamente pelos avanços da medicina, com a descoberta dos agentes patogénicos e das vacinas sobretudo a partir de finais do século XIX, fizeram diminuir de forma significativa as taxas de mortalidade dos surtos epidémicos. Todavia em 1899 ainda surgiu uma grave crise de peste bubónica – que então somente afetava países muito subdesenvolvidos – na cidade do Porto, tendo causado 37 mortos, incluindo o célebre higienista Câmara Pestana.
Ao longo do século XX, as epidemias relacionadas com as más condições de saneamento praticamente desapareceram em Portugal, embora até há cerca de quatro décadas ocorressem ainda episodicamente alguns casos clínicos de cólera em zonas mais desfavorecidas das grandes cidades.
Pedro Almeida Vieira