
Pedro Almeida Vieira | Engenheiro biofísico e economista


A culpa foi do Natal, disse a Imprensa. A culpa é da variante inglesa, disse a Imprensa. E diz agora ainda, a Imprensa, que a variante inglesa está a atacar mais as crianças, que há crianças nos cuidados intensivos. A inenarrável ministra da Saúde, Marta Temido, veio também fazer um auto de contrição, tratando-nos como crianças, embora não saiba tratar da Saúde Pública dos portugueses, ao dizer que o Governo não conseguiu ultrapassar a “dificuldade em comunicar que, apesar de querermos proporcionar uma forma mais tranquila possível de viver o período do Natal, isso não queria dizer o ‘vale-tudo’”. Enfim, a ministra deveria também falar dos seus sete colegas de Governo que, talvez por acharem que “valia-tudo”, se deixaram infectar, a menos que ela os veja como vítimas de um povo carrasco.
Mas vamos lá ser verdadeiros! Em Portugal morreram dois adolescentes e uma criança com covid-19 em quase um ano. Todas com comorbidades graves. São mortes sempre lamentáveis. Porém, quantas costumam ser as mortes por pneumonias e infecções respiratórias neste grupo etário? Eu respondo, de forma exaustiva, com base na Plataforma da Mortalidade do Serviço Nacional de Saúde (SNS): em 2014 foram seis; em 2015 três; em 2016 foram 14; em 2017 mais sete; e, por fim, em 2018 foram 12. Até Maio de 2020, nos primeiros três meses da pandemia, houve mais de 100 crianças e adolescentes internados, oito estiveram em cuidados intensivos, todos receberam alta. Mas isso não interessa nada, não é? Feche-se as escolas.

Também não interessa nada que num Janeiro de descalabro total, com dias sucessivos de mais de 700 mortes por todas as causas, o grupo etário dos menores de 25 anos até tenha ficado com uma taxa de mortalidade abaixo da média. Isso não interessa nada. Ponha-se aí mais pânico. Em tudo. Ponham mais medo. Em todos. Ponham as pessoas a não questionar sequer porque existem agora tantas mortes em Portugal por covid-19, quase todos idosos; a nem sequer repararem que estamos agora com níveis de mortalidade cinco vezes superiores ao Brasil; a nem sequer quererem olhar para o “umbigo lusitano”, preferindo lamentar a sorte de Manaus (Amazonas), onde afinal a mortalidade é semelhante à do nosso país.
Na verdade, existem dois motivos para o actual descalabro português. Primeiro, o colapso do SNS. Em Dezembro morriam nos hospitais, em cada dia, 25 pessoas por cada mil internados-covid; em janeiro passaram a morrer quase 45 por cada mil. Havendo seis mil internados, essa diferença representa 120 mortes a mais somente por causa desse colapso.
O segundo motivo é insuportavelmente silenciado: os lares, cujos utentes integram (diria quase na totalidade) o grupo dos maiores de 80 anos. Durante Janeiro foram estes idosos que apresentaram a mais elevada taxa de incidência relativa (37,7 casos por mil pessoas deste grupo etário), mesmo superior aos jovens adultos dos 20-29 anos (37,2 por mil). Que raio de estratégia de protecção se anda a fazer nos lares?

Mais de 10 meses depois do início da pandemia, o Governo insiste em não divulgar o que se passa nos lares, e a Imprensa não pergunta. Não se sabe quantos idosos dos lares estão infectados, quantos destes morrem em cada dia. Nada se sabe. Os velhos mortos dos lares, esses, vão-se somando, anonima e silenciosamente, e servindo somente para alimentar o pânico, de modo a se aceitarem todas as restrições e imposições de um Governo responsável por uma das gestões mais vergonhosas da pandemia a nível mundial.
Portugal, por causa do caos do SNS e da falta de protecção eficaz dos lares, arrisca a tornar-se em breve um dos piores países afectados pela covid. Está, neste momento em 10º lugar (excluindo pequenas nações com menos de um milhão de habitantes). E se tudo continuar como está só pode piorar. Perdeu-se o controlo de uma doença controlável. Mas pior do que isso, esconde-se até a vergonha.
Em Manaus, pelo menos vêem-se flores nas valas comuns. Em Portugal metem-se os velhos para debaixo do tapete, e uma pedra no assunto.