
Portugal é o país mundial com pior desempenho em 2021 na luta contra a covid-19, registando já um pico diário superior a 300 óbitos. Peritos, políticos, comentaristas e jornalistas foram lestos a apontar o Natal, e o suposto mau comportamento dos portugueses, como causa exclusiva para a vaga crescente de infecções. Contudo, uma análise detalhada da evolução dos casos positivos mostra que o descontrolo, sobretudo patente no grupo dos mais idosos – o grupo que contribui com dois terços das mortes –, coincidiu com o início da vaga de frio em 5 de Janeiro, e só inverteu agora em Fevereiro. Terá a hecatombe origem nos lares? Não se sabe, porque o Governo pouco diz.
Pedro Almeida Vieira

Tantas vezes apontado como culpado, o Natal – ou, melhor dizendo, a “permissão” do Governo para as festividades natalícias, que “favoreceram” o suposto mau comportamento dos portugueses – não parece ter sido a porta de entrada para uma inusitada onda de infecções pelo SARS-CoV-2 durante o mês de Janeiro. Analisando em detalhe a evolução desde início de Dezembro passado dos novos casos positivos nos dois grupos etários que têm estado da berlinda – os jovens em idade escolar e os idosos, sobretudo pelos relatos de lares com surtos –, nada indica que tenha sido a última semana de 2020, e mesmo os primeiros dias de Janeiro, o rastilho para a hecatombe que coloca Portugal como o país do Mundo em 2021 com mais mortes causadas pela covid por milhão de habitantes.
Com efeito, no decurso de Dezembro, tanto a situação dos mais idosos (maiores de 80 anos) como dos adolescentes (10-19 anos), não prognosticava um terrível Janeiro, apesar de ser este o mês mais mortífero de qualquer ano. Embora tenha ocorrido uma subida nos casos positivos a partir do dia 28 de Dezembro, tal aparenta ter sido mais devido ao ritmo de testagem e registo do que por qualquer início de uma infecção em massa, porquanto imediatamente a seguir ao Natal ocorrera uma descida que aparenta ser administrativa. Por exemplo, no grupo dos maiores de 80 anos, em 22 de Dezembro houve 441 casos positivos, mas dois dias depois foram registados somente 352, enquanto no dia de Natal apenas 101. Entre os dias 26 e 28 continuaram a ser contabilizados menos de 200 casos, subindo depois os registos para 423, 678 e 581 novos casos, respectivamente nos dias 29, 30 e 31. Os primeiros dias de 2021, até ao dia 4 de Janeiro, retomaram os níveis de infecção do mês anterior. O grupo dos adolescentes teve uma evolução quase a papel químico ao longo do último mês de 2020.

O “salto” de novos casos positivos apenas ocorreu, e de forma repentina, a partir de 5 de Janeiro, coincidindo, “milimetricamente”, com o início da vaga de frio que varreu Portugal durante duas semanas. Nesse dia, para os maiores de 80 anos foram contabilizados 771 novos casos, enquanto nos adolescentes 978. No dia anterior tinham sido registados, respectivamente, 398 e 412 novos casos. Ou seja, em ambos os grupos as novas infecções praticamente duplicaram em apenas um dia. E iniciou-se depois uma intensa e imparável tendência de subida até ao final de Janeiro, indiferente ao novo Estado de Emergência. Aliás, três dias mais tarde, em 18 de Janeiro), pela primeira vez na pandemia ultrapassaram-se os mil novos casos positivos no grupo dos maiores de 80 anos. Este nível de infecção manteve-se até finais de Janeiro.
No grupo dos adolescentes, a evolução foi também muito similar – na verdade, mais uma vez, quase a papel químico –, embora em números absolutos um pouco maiores. Contudo, neste grupo, sem problemas relevantes. Face à respectiva taxa de letalidade, os cerca de 30 mil casos positivos em adolescentes ao longo de Janeiro deverão resultar, no máximo, em uma só morte. Bem diferente será o impacte dos cerca de 25 mil casos nos maiores de 80 anos neste período. Com uma taxa de letalidade de 14,6%, será previsível que haja quase 3.700 idosos mortos. Uma parte terá já ocorrido no mês passado; outra estender-se-á, fatal e lamentavelmente, ao longo de Fevereiro.
Apesar do brutal e mortífero impacte da covid-19 nos mais idosos, incomensuravelmente superior ao dos grupos etários, manifestamente não se observa qualquer efeito prático da estratégia política para conter a pandemia neste grupo etário. Considerando a taxa de incidência relativa – ou seja, casos positivos por 100.000 habitantes do grupo etário –, observaram-se sempre mais novas infecções diárias nos idosos do que nos adolescentes. Nenhuma das medidas preconizadas ao longo do último mês, incluindo intensificação de testagem e criação de “brigadas” de apoio, inverteu a tendência de agravamento, tanto assim que este grupo foi o mais atingido em termos relativos. No início de 2021, os novos casos positivos por dia nos maiores de 80 anos situava-se nos 61 por 100.000 habitantes (média móvel de uma semana); três semanas mais tarde, a 22 de Janeiro, quase triplicara, situando-se então nos 170. Apesar de uma diminuição significativa na última semana, em 3 de Fevereiro a taxa estava nos 101 casos diários, enquanto nos adolescente descera já para os 67.

Para uma melhor compreensão deste “fenómeno” de desprotecção dos mais idosos (maiores de 80 anos) seria necessário analisar os dois “subgrupos” que o constituem: aqueles que ainda mantêm autonomia e os outros que necessitam de maior apoio social. Com efeito, nesta população de quase 670 mil pessoas – já em si bastante vulnerável a outras doenças –, estão integradas a quase totalidade dos cerca de 100 mil utentes das chamadas Estruturas Residenciais para Pessoas Idosas, vulgo lares. Este subgrupo vive nos cerca de 2.500 lares, dos quais aproximadamente 1.750 de carácter não-lucrativo, além de algumas centenas ilegais. Estima-se que a média de idades ronde os 85 anos.
Embora em muitos outros países seja conhecida com detalhe a situação dos lares (e.g., Estados Unidos, Reino Unido, Suécia, Austrália, etc.), em Portugal mantém-se uma cortina negra sobre a covid nas ERPI. Em Setembro, a ministra da Saúde, Marta Temido, afirmou no Parlamento que “aprendeu-se muito e aprendeu-se de uma forma muito pesada [com as mortes nos lares durante a Primavera], porque com cada uma destas mortes sentimos que falhávamos um pouco e isso leva-nos, sobretudo, a pensar que temos que ser melhores para a próxima e é isso que estamos a tentar fazer”. No entanto, nos últimos meses a estratégia de comunicação do Governo é a mesma de sempre: ausência de informação detalhada, sabendo-se apenas, através da comunicação social, de surtos aqui e ali. Em 28 de Janeiro, num debate parlamentar, a ministra da Solidariedade Social, Ana Mendes Godinho, apenas quis adiantar estarem activos 364 surtos em lares, e que a taxa de letalidade era de 28%, ou seja, o dobro da registada para o grupo dos maiores de 80 anos. Quanto ao número de utentes de lares com teste positivo, hospitalizados e mortos durante a vaga de infecções de Janeiro, pois bem: “aos costumes disse [ela] nada”.

Fonte: DGS e INE