Quarta-feira, Junho 7, 2023
InícioOpiniãoOS IMUNDOS TEMPOS DA DOENÇA – PARTE V

OS IMUNDOS TEMPOS DA DOENÇA – PARTE V

Posturas para inglês ver 

Por estas descrições pode supor-se que Portugal – sobretudo Lisboa, que então abarcava cerca de 10% da população do país – muito tarde acordou para os problemas da limpeza urbana. Porém, na verdade, até nem foi assim. Desde meados da Idade Média até ao século XVIII, foram sendo criados inúmeros regulamentos e posturas com o intuito de impor regras de recolha do lixo nas principais cidades, embora não por razões estritamente de saúde pública, mas sobretudo por razões estéticas ou de decoro. 

No caso concreto de Lisboa, desde tempos ancestrais, encontram-se diversas disposições e proibições no sentido de evitar a acumulação de dejetos e de esgotos domésticos nas ruas. Entre 1485 e 1495, o rei D. João II emanou diversas cartas régias e alvarás, ordenando a limpeza da cidade e dos canos das habitações, proibindo também o abandono de lixo nos quintais descobertos e fixando o seu local de lançamento, quase sempre junto às praias ou em buracos abertos para o efeito. Nesse período, o monarca também determinou, por carta régia de 1486, que nas freguesias da capital fossem contratadas pessoas, pagas pelos moradores, para a limpeza das ruas. Ao longo dos séculos, os encargos da limpeza eram suportados por impostos, através de fintas (imposto em função dos rendimentos) ou aplicados a determinados víveres. Durante algum tempo, sobretudo no período filipino, aproveitou-se, para os custos da limpeza, parte do real da água, um imposto, sobre diversos víveres, que estava destinado à construção de um aqueduto (obra que continuaria a ser adiada até ao século XVIII). Mais tarde, já no século XVIII, foi criado um imposto especial – o realete da limpeza –, que incidia sobre a carne e o vinho.

 Durante as décadas seguintes, foram sendo aplicadas mais ordens para sanear as cidades, sobretudo quando a zona portuária se foi estendendo por causa das Descobertas. No fim do reinado de D. Manuel I foi determinado que os lixos deveriam ser despejados na zona de Santa Catarina, na praia de Santos ou atirados para herdades dos arredores. Tudo se manteve quase como estava nas décadas seguintes. Durante o reinado de D. Sebastião, os homens que andavam com carretões a transportar o lixo não eram mais de quatro, pelo que a cidade continuava insalubre. 

No período da dominação castelhana, entre 1580 e 1640, este problema manteve-se. Após a Restauração, em 1661 o conde de Vale de Reis, presidente do Senado de Lisboa, ordenou que a cidade fosse dividida em bairros e que aos respetivos ministros se acometesse a obrigação de executarem as ações de limpeza, atribuindo-lhes uma verba e indicando os locais dos monturos. Ainda no século XVII, na sequência de um empréstimo, o Senado de Lisboa adquiriu seis carros de duas rodas para se recolher o lixo durante a noite, fixando um imposto por cada morador. 

As diversas posturas que foram sendo decretadas continuaram em vigor durante as décadas seguintes. Assim, em pleno século XVIII, na capital portuguesa era interdito deitar lixo nas praças públicas, em travessas e becos, bem como perto de cemitérios e de locais de culto. Também era interdito deixar-se porcos e patos à solta pelas ruas, e impediu-se ainda que se prendessem bestas e cavalos nas ruas. Os animais mortos não podiam ser abandonados nas vias públicas. Para a retirada do lixo das casas ou para os despejos de águas, havia também normas. Assim, apenas se poderiam despejar águas das janelas a partir de determinada hora, sinalizada pelos sinos das igrejas, mas com a obrigatoriedade de se gritar, antecipadamente e por três vezes, «água vai». 

A deposição do lixo estava interdita aos sábados e dias santos. Nos outros dias, os detritos poderiam ser colocados junto à testada da respetiva habitação, de modo a serem depois transportados pelos ribeirinhos ou por negras calhandreiras, até as praias ou outros locais convenientemente indicados. Não poderiam ser levados em bacios ou ciscos; apenas em canastras ou carroças. Além disso, as frentes das portas tinham de ser limpas pelos proprietários pelo menos duas vezes por semana. 

Para os infratores estavam previstas fortes penalizações. Quem deitasse águas antes do toque do sino, pagaria uma pesada multa, agravada para um montante até 10 vezes superior se contivesse «água fedorenta, suja de escamas do pescado, ou urina». Quem, por malícia, deitasse «bacio de sujidade ou caqueirada nas portas dos vizinhos» poderia ser condenado a 20 dias de prisão e a uma multa de quatro mil reis, que seria reduzida em 200 réis se provasse ter sido «por desastre». Quem fizesse os «seus feitos» – ou seja, urinasse ou defecasse – debaixo dos arcos do Rossio ou nas ruas e travessas, podia apanhar alguns dias de prisão, para além de uma multa. Quem aproveitasse as enxurradas, aquando das chuvas, para despejos ilegais, estava sujeito a uma coima de mil réis. Note-se que os denunciantes beneficiavam sempre de metade do valor das coimas aplicadas. 

A par dos relatos de estrangeiros, diversos documentos oficiais demonstram que, apesar de tudo isto, as disposições municipais foram quase sempre ineficazes, sendo inumeráveis as sucessivas queixas e alertas do Senado de Lisboa, durante os reinados de D. Pedro II e D. João V. No início do século XVIII, numa exposição ao rei, a Câmara de Lisboa considerava que a limpeza da cidade era «o negócio da maior importância que há na república, pelas prejudiciais consequências que do contrário resultam ao bem comum». 

Como facilmente se depreende das posturas referidas, atribuir a responsabilidade exclusiva da limpeza das vias públicas aos seus habitantes estava botada ao insucesso. Por mais fiscalização e vigilância, através dos chamados almotacés, os despejos de águas residuais e de lixo, para as vias públicas, sempre foram muito frequentes. Por um lado, porque uma parte considerável da população, pela pobreza em que vivia, não tinha condições para contratar ribeirinhos ou negras calhandreiras para lhe levar os despejos até ao estuário ou locais ermos. Por outro, era relativamente mais fácil aguardar pela noite, sem qualquer iluminação, para fazer os despejos. Além disso, em muitas situações, os despejos nas praias do estuário do Tejo não só causavam profundo fedor e poluição, mas também conflituavam com algumas atividades portuárias e de navegação. 

A aplicação de impostos para a limpeza, por bairro, que incidia de modo proporcional aos rendimentos dos habitantes, acabou também por não solucionar o problema. Por um lado, na época das chuvas, as enxurradas traziam as imundícies das cotas mais elevadas para as zonas mais baixas, promovendo-se assim conflitos sobre a que bairro deveria ser atribuído o custo dessas limpezas. Por outro lado, as classes mais endinheiradas – a nobreza, parte da burguesia e os clérigos –, muitas vezes recusavam pagar os impostos, arranjando subterfúgios diversos. No início do século XVIII, os vereadores de Lisboa chegaram até a dirigir-se ao rei, dizendo-lhe que, «querendo o Senado de algum modo remediar esta desordem», tinham contactado as «pessoas poderosas, para que mandassem pagar o que lhes tocava para a limpeza»; porém, acrescentaram, «eles não só não satisfizeram o que estavam devendo, mas nem resposta lhes mandaram». Tendo o Senado visto «que era infrutuosa essa diligência», relataram os vereadores, e também nada alcançado quando remeteram «róis dos tais poderosos» à Secretaria de Estado para os «obrigar ao pagamento», lamentavam, por fim, que «se não falara nesta matéria mais». Resultado desta falta de dinheiro: formaram-se «grandes lodos que se viam quotidianamente sem se limparem, com escândalo universal desta cidade». 

Em vária documentação respeitante a Lisboa durante o reinado de D. João V – que abrangeu um período de larga riqueza, pelo ouro e diamantes chegados do Brasil –, destacam-se inúmeros problemas de sujidade das vias públicas, que resultavam sobretudo do desleixo da população. O Senado da Câmara de Lisboa, em meados da década de 30, referiu que «ao mesmo tempo que os ribeirinhos iam limpando [a rua], podendo lançar o lixo seco para se levar, [os habitantes] os deixavam em casa e depois o lançavam na rua, de maneira que, vindo daí a tempos, lhes fosse mais penoso levar-se [o lixo], em razão de que, com as águas das janelas [os despejos de águas sujas], se fazia tudo em lodo que, para o poderem levar, era necessários aos ribeirinhos andar buscando esterco pelas estrebarias para o misturarem, e nesta diligência gastavam dois tempos, padecendo a república o que se experimentava na falta da limpeza». Mesmo com esta explanação em português antigo, se percebe bem como Lisboa não era nenhum modelo de asseio naqueles tempos. 

Esta situação não se alterou muito ao longo das décadas seguintes. Em 1780, sob supervisão de Pina Manique, a Intendência-Geral da Polícia passou a administrar e arrecadar dois impostos municipais – o real e o realete da carne –, que se destinavam às despesas de reedificação da cidade após o terramoto de 1755, ao conserto das vias públicas, das fontes e também da limpeza da cidade. Desse modo, as funções relativas ao saneamento de Lisboa foram retiradas à administração autárquica.

Pedro Almeida Vieira

Apoie o Farol XXI
RELATED ARTICLES

Most Popular

Recent Comments