Quarta-feira, Junho 7, 2023
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A PRISÃO DO NOSSO CONFINAMENTO – Ana Lopes Galvão

Ana Lopes Galvão – Advogada

Con·fi·na·men·to

Diz o dicionário que a palavra “confinamento” tem como significado:  1. Acto ou efeito de confinar ou de se confinar; 2. Estado ou condição do que está em lugar fechado ou impossibilitado de sair, geralmente por razões de saúde ou segurança.; 3. Estado ou condição do quem se retira para lugar reservado. = clausura, isolamento, retiro; 4. Limite, fronteira (in Dicionário Priberam da Língua Portuguesa, 2008-2021).

https://dicionario.priberam.org/confinamento

Focando no segundo significado vemos que se trata de uma palavra usada em contexto de saúde e de segurança, neste último caso no âmbito da prisão, concretamente nas medidas disciplinares aplicáveis aos reclusos (presos).

De facto, o Código da Execução das Penas e Medidas Privativas da Liberdade, aprovado pela Lei n.º 115/2009, de 12 de Outubro, e alterações subsequentes, prevê no artigo 105.º “Medidas disciplinares”, uma série de medidas disciplinares, por ordem de gravidade, das quais destaco as constantes das seguintes alíneas do n.º 1:

d) Restrição ou privação de actividades sócio-culturais, desportivas ou de ocupação de tempo livre por período não superior a 60 dias;

e) Diminuição do tempo livre diário de permanência a céu aberto, por período não superior a 30 dias, salvaguardado o limite mínimo estabelecido no presente Código;

f) Permanência obrigatória no alojamento até 30 dias;

g) Internamento em cela disciplinar até 21 dias.

Importa notar os limites temporais que são fixados para cada uma destas medidas, os quais entendo decorrerem da relevância que as restrições impostas têm no bem-estar dos visados. Assim, se a restrição de actividades lúdicas em geral é prejudicial, a diminuição de tempo de ar livre é mais ainda, e a permanência no alojamento e internamento revestem mesmo perigo.

Quanto à permanência obrigatória no alojamento, prevê o artigo 107.º o seguinte:

1 – A permanência no alojamento consiste na presença contínua do recluso naquele, podendo ser reduzido o período de permanência a céu aberto, com salvaguarda do limite previsto no n.º 2 do artigo 51.º

2 – O recluso mantém o direito à correspondência e a contactos com o seu advogado e com o assistente religioso.

3 – O director do estabelecimento prisional pode autorizar visitas regulares de familiares próximos com a duração máxima de uma hora por semana.

4 – Para não prejudicar a formação profissional ou escolar do recluso, o director do estabelecimento prisional pode autorizar o cumprimento desta medida em períodos interpolados.

E quanto ao internamento em cela disciplinar, o artigo 108.º diz:

1 – O internamento em cela disciplinar consiste na presença contínua do recluso em cela que assegure a sua separação da restante população prisional, podendo ser reduzido o período de permanência a céu aberto, com salvaguarda do limite previsto no n.º 2 do artigo 51.º

2 – Durante a execução da medida, o recluso é privado de actividades e de comunicações com o exterior, sem prejuízo dos contactos com o advogado ou o assistente religioso e do acesso a correspondência, jornais, livros e revistas.

3 – O director do estabelecimento prisional apenas pode autorizar visitas quando circunstâncias ponderosas o justifiquem.

4 – Durante a execução da medida de internamento em cela disciplinar aplicada a recluso que mantenha consigo filho menor, é garantido a este acompanhamento e apoio e um tempo de convívio diário entre ambos.

5 – A cela disciplinar reúne as indispensáveis condições de habitabilidade, as características e o equipamento especificados no Regulamento Geral, que concretiza as demais matérias previstas no presente artigo.

Chamo a atenção que, em ambos os casos de permanência obrigatória no alojamento e internamento em cela disciplinar, existe a preocupação de garantir o direito a permanecer a céu aberto, de acordo com o previsto no artigo 51.º:

1 – Ao recluso é garantido o direito de permanecer a céu aberto, por um período de duração não inferior a duas horas diárias, em espaços que ofereçam protecção contra condições climatéricas adversas.

2 – Nos casos excepcionais expressamente previstos no presente Código, o período referido no número anterior pode ser reduzido, nunca podendo ser inferior a uma hora por dia.

Igualmente em ambos os casos de permanência obrigatória no alojamento e internamento em cela disciplinar, existe uma preocupação de assistência médica, prevista no artigo 109.º da seguinte forma:

1 – O recluso que se encontre a cumprir as medidas disciplinares previstas nas alíneas f) e g) do n.º 1 do artigo 105.º fica sob vigilância clínica, sendo observado com a frequência necessária pelo médico, que se pronuncia por escrito sempre que considere necessário interromper ou alterar a execução da medida disciplinar.

2 – O médico do estabelecimento prisional é ouvido antes da aplicação de medida disciplinar a recluso que se encontre em tratamento médico psiquiátrico ou que revele ideação suicida ou, no caso de gravidez, puerpério ou após interrupção de gravidez, quando se trate das medidas disciplinares previstas nas alíneas f) e g) do n.º 1 do artigo 105.º e, nos restantes casos, quando circunstâncias excepcionais o justifiquem.

Aqui chegados, acredito que todos aqueles que viveram as medidas aplicadas em Portugal e, de uma forma geral no resto do mundo, já se aperceberam do paralelismo que se estabelece entre as restrições decretadas desde Março de 2020 e as medidas disciplinares aplicáveis a presos.

Logo ao abrigo do primeiro estado de emergência decretado em 18 de Março de 2020, entre as inúmeras medidas restritivas de direitos fundamentais dos cidadãos encontram-se:

  • o confinamento de doentes/infetados e de cidadãos em vigilância;
  • o recolhimento domiciliário dos cidadãos em geral;
  • o encerramento de instalações e estabelecimentos;
  • a suspensão de actividades, entre as quais se incluem as de âmbito social, cultural, artístico e desportivo.

Algumas destas restrições duram até hoje, outras foram repostas com o estado de emergência atualmente em vigor decretado em 6 de Novembro de 2020.

Independentemente do tema da inconstitucionalidade e ilegalidade das regras impostas desde Março de 2020, as restrições, ainda que possíveis, têm limites inultrapassáveis.

As Regras Mandela | The Mandela Rules

Fruto do princípio universal da dignidade humana e da consequente consciencialização da necessidade de protecção do ser humano, independentemente dos crimes que lhe sejam assacados, em 1955 realizou-se, em Genebra, o Primeiro Congresso das Nações Unidas para a Prevenção do Crime e o Tratamento de Delinquentes, que adoptou um documento com as Regras Mínimas para o Tratamento de Prisioneiros, aprovado pelo Conselho Económico e Social por meio de suas resoluções 663 C (XXIV) de 31 Julho de 1957 e 2076 (LXII) de 13 de maio de 1977.

Já nesta data se previa que:

32. (1) A punição por confinamento restrito ou redução da dieta nunca deve ser infligida a menos que o oficial médico tenha examinado o prisioneiro e certificado por escrito que ele está apto para mantê-la.

Volvidos 65 anos estas regras foram revistas e atualizadas em conformidade com a emergência dos direitos humanos e a experiência e conhecimento científico obtido ao longo das décadas seguintes sobre nomeadamente as consequências nefastas do isolamento em termos físicos, mentais e psicológicos.

Assim, conforme resulta do correspondente Guia as novas regras tiveram por base princípios básicos entre os quais:

  • A dignidade e o valor inerentes aos reclusos como seres humanos devem ser respeitados.
  • Proteção contra tratamento ou punição degradante ou desumana.
  • Devem ser feitas acomodações razoáveis ​​para deficiências físicas, mentais e outras.
  • É proibido o confinamento solitário além de 15 dias; o confinamento é apenas como último recurso e proibido para presidiários com deficiência mental ou física.
  • Os reclusos têm direito aos mesmos padrões de atendimento disponíveis na comunidade, gratuitamente e sem discriminação com base no estatuto legal.
  • Uma equipe de saúde interdisciplinar, que inclua experiência em psicologia e psiquiatria, e um dentista, deve estar disponível.
  • As decisões clínicas não podem ser anuladas por equipes não médicas.
  • As doenças mentais devem ser levadas em consideração antes das ações disciplinares.
  • Os presos acusados ​​de crimes devem receber recursos adequados para preparar sua defesa.
  • As medidas disciplinares não podem incluir a proibição do contato familiar além de um período de tempo limitado.

Um dos aspectos revistos foi o confinamento solitário que passou a constar destas novas regras da seguinte forma:

Regra 43

1. Em nenhuma circunstância devem as restrições ou sanções disciplinares

implicar tortura, punições ou outra forma de tratamentos cruéis, desumanos

ou degradantes. As seguintes práticas, em particular, devem ser proibidas:

(a) Confinamento solitário indefinido;

(b) Confinamento solitário prolongado;

(c) Detenção em cela escura ou constantemente iluminada;

(d) Castigos corporais ou redução da alimentação ou água potável do recluso;

(e) Castigos coletivos.

2. Os instrumentos de imobilização jamais devem ser utilizados como sanção por infrações disciplinares.

3. As sanções disciplinares ou medidas restritivas não devem incluir a proibição de contato com a família. O contato familiar só pode ser restringido durante um período limitado de tempo e enquanto for estritamente necessário para a manutenção da segurança e da ordem.

Regra 44

Para os efeitos tidos por convenientes, o confinamento solitário refere-se ao confinamento do recluso por 22 horas ou mais, por dia, sem contato humano significativo. O confinamento solitário prolongado refere-se ao confinamento solitário por mais de 15 dias consecutivos.

Contacto humano significativo

Importa perceber a razão por detrás destas alterações das Regras Mandela. Segundo o referido Guia: 

Confinamento solitário (Regras 43-46)

Dado o seu efeito devastador na saúde, no plano físico e mental, as Regras estipulam que o confinamento solitário só deve ser usado em casos excepcionais, como um último recurso, pelo menor tempo possível, após autorização por uma autoridade competente, e sujeito à revisão independente. O confinamento solitário indefinido e prolongado (de mais de 15 dias) é totalmente proibido. Para alguns grupos, por ex. grávidas ou mulheres que amamentam, é proibido qualquer uso de confinamento solitário.

As regras definem confinamento solitário como confinamento por mais de 22 horas por dia sem contacto humano significativo. A interpretação de “contacto humano significativo” deve considerar o sofrimento que qualquer a pessoa sentirá se for isolada e privada de contato com outros seres humanos. [Ver também ONU Regras de Bangkok e Regras de Havana da ONU].

É patente o reconhecimento da absoluta necessidade de contacto humano significativo para a existência humana e que a sua falta provoca sofrimento e tem gravíssimas consequências ao nível físico, mental e psicológico. 

É fixada a proibição de confinamento solitário prolongado, ou seja, aquele que excede os 15 dias, com base no conhecimento adquirido.

Resulta também das normas citadas a importância da manutenção do contacto familiar e limitação da sua proibição a curtos períodos.

E ainda a necessidade de uma avaliação médica prévia e individual da adopção de medida de confinamento e o acompanhamento médico ao longo da aplicação da medida de confinamento, à semelhança do previsto pela lei portuguesa acima mencionada, o Código da Execução das Penas e Medidas Privativas da Liberdade, concretamente no artigo 109.º. 

Voltando à situação que se vive em Portugal desde Março de 2020, são inúmeros os seres humanos aos quais foi imposto um confinamento do qual resultou a inexistência de contacto humano significativo por períodos superiores a 15 dias. Muitos deles por períodos de meses.

Eram e são de todas as idades e condições físicas, mentais e psicológicas e foram ou estão colocados em confinamento sem uma prévia avaliação médica nem um acompanhamento médico ao longo da aplicação da medida, para efeitos de avaliação da sua adequação e riscos envolvidos.

Esta falta de contacto humano significativo, de contacto familiar e de uma avaliação médica causou e causa grande sofrimento com as mencionadas consequências na saúde. Ironicamente aquela saúde que as medidas visam proteger.

Eis que, inevitavelmente, surgem os ditames populares: “não morrer da doença para morrer da cura” e “viver abaixo de cão”.

Estaremos a “viver abaixo de preso” e a “morrer da prisão”?

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