A pandemia da covid atingiu em Portugal, desde o início do ano, níveis de mortalidade tão elevada que já suplantou até a Espanha. O descalabro de Janeiro tem, contudo, uma causa principal: os maiores de 80 anos, o grupo mis vulnerável à doença foi aquele que registou paradoxalmente a maior taxa de incidência. Parar a Economia e as relações sociais nada fez para travar a progressiva mortandade. Até porque há uma variável que está a ser escondida pelo Governo: a situação dos lares.
Pedro Almeida Vieira
Os mais idosos foram o grupo etário com maior incidência de casos positivos durante Janeiro de 2021. Durante este período, quase 4% da população com mais de 80 anos terá sido infectada pelo coronavírus, contribuindo assim para o agudizar de um mês caótico em Portugal, onde se bateram vários lamentáveis recordes de mortalidade, quer ao nível da covid-19 quer dos óbitos por todas as causas quer ainda de mortes ocorridas em meio hospitalar e residencial.
Desde o início da pandemia até ao final do primeiro mês de 2021, cerca de 59 mil pessoas com mais de 80 anos foram consideradas infectadas pelo SARS-CoV-2, tendo 8.593 morrido, representando dois terços (67%) das vítimas fatais por covid-19. Este grupo etário representa apenas 7% da população portuguesa, mas inclui praticamente a totalidade dos utentes de lares (cerca de 100 mil pessoas).
De acordo com os registos globais do mês passado, divulgados pela Direcção-Geral da Saúde (DGS), apesar de os maiores de 85 anos constituírem apenas 8% das quase 307 mil infecções por covid – atribuídas através da positividade em testes PCR e antigénio –, a taxa de incidência neste grupo ultrapassou todos os outros grupos etários, incluindo os das crianças, adolescentes e jovens adultos.
Com efeito, calculando a taxa de incidência específica – ou seja, em relação à população respectiva do grupo etário –, os maiores de 80 anos contabilizaram 37,7 casos positivos por mil habitantes em Janeiro, um valor ligeiramente superior aos 37,2 casos no grupo dos jovens adultos (20-29 anos). Esta incidência de infecções nos mais idosos no início de 2021, além de constituir mais do que uma duplicação face a Dezembro (16,9 por mil), confirma um cenário de evidente desprotecção do grupo mais vulnerável aos efeitos do SARS-CoV-2 e com a mais elevada taxa de letalidade.
Essa desprotecção evidencia-se sobretudo quando se analisa o padrão da incidência das infecções pelos grupos etários. O grupo que apresenta a maior taxa de incidência acumulada é o dos jovens adultos (20-29 anos), que actualmente se situa nos 96,2 por 1.000 habitantes (ou 9,62%). Nos grupos de idade inferior observa-se sempre, por norma, uma taxa bastante menor, sendo de 45,2 por mil dos 0 aos 9 anos e de 64,5 por mil dos 10 aos 19 anos. Nos grupos imediatamente subsequentes aos jovens adultos (20-29 anos) observa-se então uma consistente tendência de descida desta taxa. Tendo como referência os jovens adultos, a regra é simples: quanto mais velhos, menor a incidência. Em valores também acumulados, os adultos dos 30 aos 39 anos registam 84,2 casos por mil, continuando a baixar nos grupos etários subsequentes. Na faixa dos 60 aos 69 anos encontra-se nos 56 por mil (mais baixo do que nos jovens dos 10 aos 19 anos), e reduz-se ainda mais no grupo dos 70 aos 79 anos (48,3 por mil). Porém, a regra acaba depois com a excepção. Quando se esperaria que uma expectável menor mobilidade (física e social) – que diminui o risco de exposição a infecções – correspondesse a uma menor taxa de incidência, e que esta fosse ainda menor na população reformada, a situação do grupo dos mais idosos (maiores de 80 anos) contraria esta tese.
Em teoria, esperar-se-ia que os maiores de 80 anos (onde prevalece uma percentagem muito elevada de pessoas viúvas, vivendo sozinhas), até por terem menor mobilidade e menores contactos sociais, registassem uma menor incidência do que as pessoas entre os 70 e 79 anos. No entanto, desde o início da pandemia, tal situação nunca se verificou em Portugal. Durante a primeira onda (Abril), a taxa nos maiores de 80 anos foi mais do triplo da dos 70 aos 79 anos (4,5 por mil contra 1,4 por mil). Após um Verão com poucas infecções nos idosos, o advento da segunda vaga trouxe uma maior discrepância nas taxas de incidência nestes dois grupos etários. Em Outubro, as duas taxas ainda estavam próximas: nos maiores de 80 anos era de 6,8 casos por mil, enquanto se situava nos 4,1 nos 70 aos 79 anos. Em Novembro e Dezembro, porém, a diferença disparou. No último mês de 2020, a taxa de incidência nos maiores de 80 anos já era sensivelmente o dobro (16,9 por mil contra 8,7 no grupo dos 70 aos 79 anos). Aliás, denotava-se até um sinal de agravamento antecedendo a hecatombe de Janeiro de 2021. Com efeito, entre Novembro e Dezembro a taxa no grupo dos 70 aos 79 anos registou mesmo uma ligeira diminuição, ao contrário dos maiores de 80 anos que, desde Setembro, vinham sempre a contabilizar cada vez mais casos positivos.
O descontrolo absoluto na incidência da covid-19 no grupo dos maiores de 80 anos constitui a principal causa para a elevada mortalidade directa e indirecta da pandemia, e estará relacionada com a situação dos lares, sobre a qual o Governo mantém uma contínua cortina negra, ignorando-se o número de infectados, hospitalizados e vítimas. Ao contrário de muitos países, Portugal não tem um registo oficial e público sobre os efeitos da covid-19 nos lares e unidades de cuidados continuados.
Apesar de a covid-19 registar em Portugal uma taxa de letalidade – relação entre os óbitos e os casos positivos – de apenas 1,8%, esse valor agrava para os 14,6% nos maiores de 80 anos, situando-se nos 5,5% para a população dos 70 aos 79 anos. Nos menores de 60 anos, a letalidade é menor de 0,3%, sendo mesmo estatisticamente irrelevante nos menores de 40 anos. Significa isto que se 1.000 casos positivos em jovens adultos, adolescentes ou crianças não causarão, em princípio, sequer uma morte, o mesmo número de infecções em maiores de 80 anos resultará previsivelmente em 146 óbitos, enquanto similar situação desencadeará 55 óbitos no grupo dos 70 aos 79 anos.
Em todo o caso, mesmo se a situação do grupo dos 70 aos 79 anos é de menor gravidade, certo é que, globalmente, o mês de Janeiro foi de descalabro completo para a globalidade dos idosos, cujas consequências, ao nível da mortalidade, ainda se prolongarão por Fevereiro. De acordo com os dados da DGS, foram contabilizados naquele mês 25.194 casos positivos apenas nos maiores de 80 anos. Sozinho, o primeiro mês de 2021 registou 43% do total das infecções neste grupo desde o início da pandemia, num ritmo médio de 813 infectados por dia. No caso do grupo dos 70 aos 79 anos (que integram 973 mil pessoas, cerca de mais 300 mil do que os maiores de 80 anos), o mês de Janeiro também teve um peso relevante (42,7% do total desde o início da pandemia), com uma média diária de 654 infectados. Porém, ao nível da mortalidade, os efeitos são completamente distintos.
Aplicando uma taxa de letalidade de 14,6%, o mês de Janeiro deixará um “rasto” provável de vítimas nos maiores de 80 anos que poderá ascender às 3.700, enquanto que no grupo dos 70 aos 79 anos esse valor, face a uma taxa de letalidade de 5,5%, esse número rondará os 1.100. De uma forma detalhada, por dia, serão 118 óbitos de pessoas com mais de 80 anos, e 36 com idade entre os 70 e 79 anos.Estes valores de infecção em Janeiro, que resultaram num incremento da mortalidade total nesse mês – e que seguramente manterão, por si só, os óbitos por covid bem acima dos 150 ao longo de grande parte de Fevereiro –, constituem um retumbante falhanço na estratégia de protecção dos idosos em Portugal, assente em restrições e lockdowns.
Por um lado, porque a tendência de crescimento das infecções se notava bem nos grupos mais idosos desde Outubro; e, por outro, pela maior incidência no grupo etário onde se concentram as pessoas institucionalizadas (lares). Na verdade, se se tivesse conseguido que a taxa de incidência nos maiores de 80 anos fosse, pelo menos, similar à do grupo precedente – ou seja, 20,8 em mil, em vez de 37,7 –, o Janeiro teria registado menos de 14 mil infectados neste grupo, em vez de mais de 25 mil. Esta diferença resultaria em mais de 1.600 vidas salvas.
Fonte: DGS
Nota: Aconselha-se a consulta das estatísticas detalhadas sobre taxas de incidência, letalidade e mortalidade na secção Álgebras.