Carlos M. Fernandes | Investigador Científico
Já por várias vezes comentei, até nos meios de comunicação social convencionais, o estado miserável da ciência, em geral, e o comportamento inadmissível de alguns dos seus agentes ao longo desta epidemia de demência que nos devasta. O sentimento corporativo é, na minha opinião, um sintoma de atraso civilizacional e não tenho qualquer problema em expor o meu próprio território ao escrutínio público. Dito isto, há que fazer agora uma adenda à laia de ressalva.
A despeito das proclamações apaixonadas sobre o papel fundamental da ciência na nossa vida e nesta crise em particular (e que confundem, amiúde, a ciência com a técnica), o triste espectáculo que está em curso na arena do debate público tem pouca ciência. Muitos daqueles que nos massacram com as mensagens do medo, não obstante autoproclamarem-se guardiões do edifício científico, não são cientistas – e, a maior parte, nem sequer tem treino científico. Entre aqueles que o são, alguns não têm a mínima formação ou prática em epidemiologia ou virologia.
Sempre defendi que qualquer pessoa com cérebro tem legitimidade para comentar e criticar todos os temas sobre os quais se tenha debruçado com seriedade. No entanto, vivemos sob o dogma da especialização e até já há quem apele à censura, invocando um inexistente atributo sagrado da ciência ou hipóteses controversas, como a de Dunning-Kruger (o consenso, para um pseudocientista, só é válido quando confirma as suas convicções). Foi com estes pretextos que, nos últimos meses, jornalistas e direcções editoriais reuniram uma tribuna homogénea de comentadores, tribuna que já demonstrou ter uma tremenda influência na opinião pública e, consequentemente, no poder político. Era de esperar que os jornalistas fossem coerentes com a sua vontade de «ouvir os especialistas».
Ora, quando reparamos que o púlpito mediático é composto, em grande parte, por curiosos, novatos e técnicos, percebemos que o termo «especialista», para a comunicação social, tem como verbete «aquele que está de acordo com o discurso oficial». Desta forma, pouco importa a formação ou especialização de quem tenta furar o cerco sanitário à opinião divergente. Uma vez detectado um indício de dissidência, o «especialista» transforma-se imediatamente em «negacionista» e é rejeitado.
A ciência não está bem, e o declínio já vem de trás. Mas quem se tem portado pior nesta crise sanitária convertida em pretexto para todos os abusos é a comunicação social. Os jornalistas, por omissão ou solicitude, têm sido cúmplices do maior ataque das últimas décadas à liberdade, à dignidade e ao tecido social. É preciso, com alguma urgência e veemência – e, por que não dizê-lo, com agressividade verbal quanto baste –, recordar-lhes as suas responsabilidades e códigos deontológicos.