Sexta-feira, Setembro 22, 2023
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Como o colapso do Serviço Nacional de Saúde ajudou o vírus a matar mais

Janeiro colocou Portugal nas bocas do Mundo por maus motivos. Depois do suposto milagre lusitano na Primavera, o país entrou em colapso absoluto no primeiro mês de Janeiro, estando já no triste lote dos 10 piores países na gestão da pandemia, à frente da Espanha, Brasil e Estados Unidos. A comunicação social e, implicitamente, o Governo culparam o Natal, e os portugueses, pelo desastre. Mas, se houve desastre, este foi no Serviço Nacional de Saúde. Veja aqui uma análise que prova isso.

Pedro Almeida Vieira

O colapso do Serviço Nacional de Saúde (SNS) durante o mês de Janeiro terá sido responsável por um acréscimo de mortalidade por covid-19, apenas nesse mês, entre 2.070 e 3.556 óbitos. Esta estimativa baseia-se somente no agravamento registado naquele período em termos de eficácia de tratamento dos doentes internados nos hospitais, incorporando, portanto, o aumento dos internados. 

De acordo com os cálculos baseados na taxa de mortalidade diária nos “covidários” – e assumindo, assim, que quase a totalidade das mortes por covid-19 se observam em meio hospitalar –, conclui-se que se se tivessem mantido os níveis de eficácia de Novembro e Dezembro (2,5% por dia), seria expectável que ocorresse, ao longo do primeiro mês de Janeiro e ponderada a variação do número de internados, um total de 3.715 óbitos por covid-19. Caso a eficácia fosse similar à registada em Setembro e Novembro – uma taxa diária de mortalidade dos internados a rondar os 1,5% –, então seria de esperar um total de 2.229 óbitos. Contudo, na realidade, a Direcção-Geral da Saúde contabilizou 5.785 óbitos causados directamente pela pandemia. 

A importância da eficácia do tratamento hospitalar dos doentes-covid – sendo a taxa diária de internamento um excelente indicador – acaba assim por se mostrar mais relevante do que o número de internados. Ou, melhor explicando, sendo certo que existe uma relação directa e óbvia entre internados por covid-19 e mortos por covid-19, essa relação não é linear, pois necessariamente entra nessa equação a capacidade de tratamento. Se um sistema de saúde reduz a capacidade de continuar a salvar proporcionalmente tantas pessoas como antes, significa que a relação óbitos/internados aumentará, mostrando sinais de ruptura. Foi aquilo que sucedeu em Portugal sobretudo ao longo do mês de Janeiro deste ano. 

Este “fenómeno”, chamemos-lhe assim, fruto do fraco investimento no reforço do SNS pelo actual Governo para enfrentar a pandemia, nota-se numa simples análise da evolução dos internamentos e das mortes por covid-19 em Fevereiro. As mortes por covid-19 desceram mais de 40% desde o início do mês, uma descida mais rápida do que a redução no número de internados, cuja descida foi de apenas cerca de 23%. Ou seja, nota-se aqui um sinal de recuperação da eficácia. Ora, para se recuperar a eficácia em Fevereiro é porque ela se perdera, e muito, no período anterior. E muito, sobretudo em Janeiro.

Perder eficácia no tratamento hospitalar numa doença como a covid-19 tem uma consequência trágica: mais mortes do que seria expectável. Esta doença, ao contrário do que se possa parecer na comunicação social, é tratável em grande maioria dos casos, mesmo em pessoas idosas e vulneráveis, e é assim “sensível” aos efeitos dos melhores ou menores cuidados médicos. Por isso, a equação final é tão simples quanto isso: se houver bons cuidados médicos, a probabilidade de morte é baixa; se não houver é mais alta. Muito mais alta. Por isso, os médicos, os enfermeiros e outros profissionais são tão vitais. Por isso, tanto ou mais do que lockdowns e muitas outras medidas absurdas, é fundamental ter um SNS capaz. E, sem culpa dos profissionais de saúde, aquilo que se viu em Janeiro foi um SNS incapaz.

Com efeito, analisando a evolução nos últimos meses do indicador da taxa diária de mortalidade dos doentes-covid internados – calculado em função dos óbitos do dia N e dos internados do dia N-1 – nota-se que a situação atingiu contornos gravíssimos em Janeiro, embora com sinais já preocupantes a partir de Novembro do ano passado. Em grande parte do mês de Setembro, quando as infecções estavam em níveis baixos e havia poucas centenas de internados, essa taxa situou-se em valores abaixo de 1%. Significava que em cada 1.000 internados seria expectável 10 óbitos em cada dia. E, por isso, em Setembro essa fasquia raramente foi ultrapassada. Na quase totalidade do mês Outubro, porém, este indicador começou a dar sinais de agravamento, com taxas diárias de mortalidade a rondarem 1,5%, subindo bastante nos últimos dias, quando o número de internados ultrapassou os 4.000. Ao longo do mês de Novembro e Dezembro, este indicador estabilizou, rondando sempre os 2,5%. Significava isto que, por cada 1.000 internados, morriam 25 doentes-covid por dia. Como durante os dois últimos meses de 2020 o número diário de internados rondou, quase sempre valores, entre 2.500 e os 3.300 internados, os óbitos por covid-19 ficaram próximos dos 100 óbitos num dia, mas nunca ultrapassaram esta fasquia. 

Tudo mudou em Janeiro deste ano. No dia 7, a taxa (móvel de sete dias) já estava nos 2,9%; uma semana mais tarde pulava para os 3,5%; no dia 21 alcançava os 4,0%, e atingiria o pico no dia 28 com uma taxa de 4,5%. Como os internamentos também aumentaram, estando em grande parte do mês de Janeiro acima dos 6.000, o desastre foi completo. Note-se, porém, que se a taxa diária de mortalidade dos internados estivesse nos níveis de Dezembro seria expectável a morte de cerca de 150 pessoas por dia – e nunca de 300 como sucedeu em alguns dias –, e se estivesse ao nível de Outubro provavelmente nem se ultrapassaria a centena de mortes diárias por covid-19. Ou seja, foi sobretudo o colapso a que se assistiu em Janeiro no SNS que justifica um aumento inusitado de mortes que colocou Portugal no top-10 dos mais afectados pela pandemia. Nesta semana, o nosso país ultrapassou os Estados Unidos em termos de mortalidade relativa (óbitos por milhão de habitantes), tendo superado já, com o morticínio de Janeiro, a Suécia, a Espanha e o Brasil. Previsivelmente, Portugal ultrapassará em breve a Itália, e ficará no grupo dos cinco piores países a nível mundial.

O colapso do SNS que se observou em Janeiro mais se confirma numa comparação com os desempenhos dos outros países europeus no período homólogo. Por exemplo, numa análise aos dados do European Centre for Disease Prevention and Control (ECDC), na terceira semana de Janeiro (com os óbitos de dia 25 como referência para o cálculo do indicador), notava-se que Portugal estava então com uma taxa diária de mortalidade dos doentes-covid extraordinariamente elevada face à esmagadora maioria dos outros países europeus. Enquanto o nosso país tinha então este indicador nos 4,3%, países como a Bulgária, Croácia, Estónia, França, Itália, Letónia, Lituânia, Polónia, Eslováquia, Espanha e Suécia estavam num nível inferior a 2%, Abaixo dos 3% encontravam-se ainda a Áustria, República Checa, Hungria e Irlanda. Apenas a Dinamarca e a Holanda mostravam níveis próximos de Portugal, mas com muitíssimo menos internados (e óbitos), o que leva a supor que estes países apenas reportem ao ECDC o número de internados de maior gravidade.Na última semana, felizmente, a curva da taxa de mortalidade dos doentes-covid em internamento mostra uma consistente tendência decrescente, aproximando-se dos níveis de Dezembro. Esta evolução evidencia a importância, no combate à pandemia, de se ter um SNS eficaz e com meios adequados. Por muitos lockdowns que possam ser feitos, e por muitas tentativas “robustas” de parar a transmissão do vírus – e será quimera julgar que se consegue isso fechando uma sociedade entre portas –, se um sistema de saúde não tiver capacidade de resposta – como ficou bem patente em Janeiro  –, só se pode aguardar coisas: morte, para as vítimas que partem; desgraça, para as vítimas que ficam.

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