
Alfredo Vieira | médico intensivista (Centre Hospitalier Réginal Mons-Hainaut, Bélgica)


Enquadramento
A Bélgica é um país com cerca de 11,4 milhões de pessoas e uma densidade populacional de 383 pessoas por km2, a terceira mais elevada da Europa, apenas atrás da Holanda (507) e de Malta (1.350). Por exemplo, a França tem 119 habitantes por km2, a Alemanha 204 , o Reino Unido 275 e Portugal apenas 112. O seu Produto Interno Bruto (PIB) per capita é de 47.500 dólares (contra 41.500 da França, 47.600 da Alemanha, 53.000 da Holanda, 42.900 do Reino Unido e 23.400 de Portugal), despendendo com a Saúde, de acordo com dados de 2014 do Banco Mundial, 10,6% do seu PIB (contra, respectivamente, 11,5%, 11,3%, 10,9%, 9,1% e 9,5% dos países atrás citados).
Politicamente, é uma monarquia constitucional parlamentar, constituída por um Governo Federal, três Governos regionais/comunitários (flamengo, valão e região de Bruxelas), e ainda por vários governos distritais, cada um com as respectivas competência. Por exemplo, existem na prática um total de nove ministros da Saúde a todos esses níveis, sendo o do Governo Federal Frank Vandenbroucke.

No seguimento das eleições de Maio de 2019 foi constituído um governo liderado pelo Alexander de Croo, mas apenas em Outubro de 2020, devido às tradicionais dificuldades de entendimento entre partidos flamengos – globalmente mais liberais economicamente e conservadores/nacionalistas socialmente – e valões – por sua vez marcadamente socialistas –. Houve nesse interregno necessidade, devido à emergência da covid-19, de formar um governo provisório, nomeado pelo rei Philippe em 17 de Março, e liderado por Sophie Wilmès.
Na Bélgica, a capacidade de internamento é de 6,4 camas por mil habitantes (contra 6,0 na França; 8,0 na Alemanha; 3,3 na Holanda; 2,5 no Reino Unido; e 3,4 em Portugal), enquanto as camas de Cuidados Intensivos, no início da pandemia, por 100.000 habitantes eram 15,9 (contra, respectivamente, 11,6; 29,2; 6,4; 6,6; 4,2 nos países acima citados).
A evolução das medidas no decurso da pandemia
O primeiro caso oficial de infecção por SARS-CoV-2 foi detectado no dia 4 de Fevereiro de 2020. A situação evoluiu e foi decretado um full-lockdown em 18 de Março.

Cerca de um mês e meio mais tarde, as medidas começaram a ser progressivamente aliviadas: no dia 4 de Maio para o sector industrial e profissões sem contacto; no dia 11 de Maio para o comércio em geral; no dia 18 de Maio para as profissões de contacto, jardins, museus e similares; a partir de 8 de Junho para o sector da restauração, desportivo, e foi dada autorização para encontros individuais até 10 pessoas diferentes por semana; no dia 15 de Junho procedeu-se à reabertura das fronteiras e aeroporto; e, por fim, no dia 1 de Julho passaram a ser permitidas as actividades restantes (piscinas, cinemas, teatros, reuniões com um máximo de 50 pessoas, etc…). As escolas não reabriram nesse ano lectivo de 2019-2020.
Aliado às restrições habituais, um pouco por todo o lado, no acesso aos espaços públicos (distanciação, etc…) e às medidas de prevenção da transmissão viral em geral, instaurou-se em todo o país a obrigatoriedade do uso de máscara comunitária em áreas interiores, e inclusive no exterior na maioria das vilas, ao longo do mês de Agosto, por receio do incremento da transmissão com a retoma escolar, no dia 1 de Setembro. As crianças foram obrigadas a usar, em permanência, máscara nas escolas, a partir dos 12 anos de idade.
Apesar das medidas, verificou-se um recrudescimento das infecções, a partir do princípio de Outubro de 2020, naquilo que foi afinal a segunda vaga, o que levou à adopção, numa catadupa sequencial, de nova série de medidas – aos vários níveis dos órgãos de decisão: federal, regional e provincial –, cada vez mais restritivas, até culminar no decreto federal de um novo lockdown no dia 2 de Novembro. Desta vez não obrigou ao fecho de fronteiras, manteve-se a indústria e as escolas abertas, excepção para as universidades, que encerram. Fecharam todas as actividades comerciais não-essenciais, a restauração, actividades desportivas, restringiram-se os contactos sociais a uma pessoa (sempre a mesma) por agregado familiar, e instaurou-se um recolher obrigatório das 22h00 às 06h00. Estimulou-se também o tele-trabalho sempre que possível, e a tele-escola para universitários e, inclusive, em algumas escolas secundárias, para os jovens entre os 14 e 18 anos, que passaram a alternar a presença física com aulas online.

Houve reabertura do comércio não-essencial em Dezembro de 2020. Não houve qualquer “relaxamento” de Natal. Prevê-se para dia 13 de Fevereiro de 2021 a reabertura de cabeleireiros e algumas outras profissões (não-médicas) de contacto, e a retoma da actividade desportiva infantil sob a forma de treinos, sem competição (entretanto cancelada para a época 2020-2021), em “bolhas” de 10 crianças (no máximo). A abertura da restauração ainda não tem data, especulando-se que seja em Abril-Maio, ou quando 60-70% da população estiver vacinada. Entretanto, decidiu-se também o fecho das fronteiras (aeroporto incluído) durante os meses de Fevereiro e Março (para viagens não-essenciais), tendo por argumento as “novas variantes”. O recolher obrigatório e a limitação da bolha de contactos a uma pessoa por agregado familiar mantém-se.
As vagas e a covid-19 propriamente dita
A Bélgica destaca-se por ser o país com maior mortalidade associada à covid por milhão de habitante a nível mundial, se se excluírem os pequenos territórios.
As razões serão diversas, mas não passam seguramente por uma falta estrutural (física ou humana) de Saúde, pois esta é ímpar.
A definição de caso suspeito – que é aqui extremamente abrangente e inespecífica – levou, segundo algumas opiniões, a uma grande sobrevalorização do número de mortes por covid, sobretudo em lares. Na verdade, mais de 50% das mortes nesses locais terão sido devido a “suspeição” de covid-19, e não covid-19 confirmada com teste (e isto sobretudo durante a primeira vaga, em que, devido à penúria de testes, estes foram reservados unicamente a doentes sintomáticos, e que precisavam de hospitalização).

Ora, isso, aliado a critérios rigorosos para prestação de certos cuidados (como se pode confirmar no site da Sociedade Belga de Cuidados Intensivos: http://www.siz.be/wp-content/uploads/COVID_19_ethical_E_rev3.pdf), pode explicar o facto de muitos doentes terem falecido em lares, sem critérios para internamento hospitalar (pelas dificuldades logísticas aliadas à falta de benefício por fragilidade extrema) e sem confirmação de doença covid-19, mas com os óbitos contabilizados como tal.
No final de 2020, a sobremortalidade na Bélgica foi de 16,6%, na sua maioria explicada pelas autoridades com a covid-19, porque sobreponível, o que, segundo elas, atestam da correcção da escolha do método de contagem dos tais “casos suspeitos”, com a excepção do excesso de mortes em Agosto, nesse caso atribuído à canícula.

Durante os surtos – essencialmente em Março-Abril e Outubro-Novembro –houve saturação de diversos hospitais, que tiveram necessidade de fazer divergir os doentes para aqueles que se encontravam menos preenchidos, numa articulação centralizada que, julgo, funcionou bem.
A assimetria foi a regra: a região da Valónia central-Oeste (Mons, Charleroi) foi afectada fortemente em ambos os surtos; a Valónia Este (Liège, Namur) foi relativamente poupada no primeiro e muito atingida no segundo; a Flandres foi sobretudo afectada no primeiro surto (com particular ênfase em Antuérpia); e Bruxelas no segundo.
Sublinho que, sem essa exemplar articulação – num país, portanto, fortemente dividido culturalmente, até pela língua, onde se fala neerlandês na Flandres e francês na Valónia –, a catástrofe teria sido total. Os hospitais, uma vez atingida a saturação, fechavam simplesmente as portas aos doentes urgentes (trazidos pelo SMUR, que é o INEM/VMER local), e esses eram imediatamente encaminhados para outros com capacidade de acolhimento. Mesmo nos doentes hospitalizados, quando havia saturação das UCI’s, eram transferidos diariamente, de forma rotineira, os doentes mais estáveis (e com menor risco de complicações no transporte) para outras Unidades do país – e, por vezes, nas antípodas –, por forma a ter vagas para eventuais descompensações entre os doentes internados nas enfermarias. Pormenor importante: essa acção não era da responsabilidade dos elementos dos respectivos serviços, mas sim assumidos pelos quadros da direcção hospitalar, articulados com os dos outros hospitais e o Ministério.
Obviamente, cada unidade hospitalar expandiu a sua capacidade de acolhimento (camas), mas, nos limites que se permitiram, não se excedeu o razoável. E, claro, converteram-se enfermarias – que, aliás, se desertificaram naturalmente de outros doentes nesses períodos – para aí se colocarem doentes-covid, até ocuparem a quase totalidade da capacidade hospitalar no pico dos surtos.
De salientar ainda a flexibilidade na retoma da actividade não-covid, que era total em Junho de 2020 (pós-1ª vaga), e se está a normalizar de novo nesta altura (pós-2ª vaga). Não existiu nunca o problema português do início da pandemia de haver uma capacidade instalada sem qualquer utilidade, sendo as necessidades analisadas localmente, autonomamente e de forma dinâmica. Não se falou também por cá de qualquer falta de capacidade de atendimento a pessoas com outras doenças – salvo algumas excepções mediatizadas –, tendo havido sempre um forte incentivo e preocupação para a retoma das actividades de rotina. Até por uma razão: o financiamento dos hospitais na Bélgica está ligado a procedimentos rotineiros que se viram fortemente afectados pela pandemia, levando inclusive a um défice financeiro generalizado das estruturas (e necessidade de correcção excepcional pelo governo federal), mas que estimulou por outro lado sempre o rápido retorno à actividade basal.
A política de Saúde Pública foi algo errática, e assentou sempre na premissa de “pecar por excesso”, com acento no sanitário, com a agravante dos governantes que viveram a primeira vaga – e que poderiam, assim, trazer a experiência acumulada para a gestão da segunda vaga – terem sido todos substituídos entre as duas.
Foi essa política, e continua a ser, liberticida e persecutória socialmente, não assente na crença da capacidade da população fazer a gestão correcta por si mesma das medidas – como acontece, por exemplo, no “modelo sueco”. Também se apostou na política de provocação do medo na população, na culpabilização de quem infectava e de quem se deixava infectar, e das camadas mais jovens, com publicidade repleta de mensagens chocantes, e censura/silenciamento total de qualquer discurso alternativo/discordante do “oficial”, proclamado pelas autoridades do momento (facto sobretudo patente ao longo desta 2ª vaga). Pode-se ver um bom retrato neste documentário (feito independentemente por um cidadão), que, com a sua pertinência (e excessos), está a provocar aceso debate na contemporaneidade (vide, por exemplo, os artigos de análise relativos a ele no principal órgão de comunicação social francófono, a RTBF, no dia 12 de Fevereiro AQUI).
A população belga, em geral, não se manifesta nem opõe às medidas impostas desta forma, pelo menos em massa ou maioritariamente, e parece tolerar surpreendentemente bem a situação. Os apoios sociais são significativos para pessoas e sectores afectados, mas fala-se também em falências e recessão. O discurso actual alimenta-se da incógnita das variantes do vírus e do receio de uma 3ª vaga. Sublinhe-se, já agora, que numa escala das “vagas belgas”, Portugal teve agora, em Janeiro-Fevereiro de 2021, a sua 1ª e única vaga.
O objectivo governamental na Bélgica parece ser o de não enveredar um retorno à normalidade – podendo inclusive recrudescer, a qualquer momento, a severidade das medidas – antes da vacinação de >60-70% da população, o que esperam atingir por alturas do próximo ano escolar (2021-2022).
Notas e impressões pessoais (e que valem apenas por isso)
- Penso que a covid-19 é uma doença globalmente benigna, e praticamente inofensiva para jovens;
- Penso que representa uma ameaça para idosos, obesos e pessoas com certas patologias crónicas (como diabetes e hipertensão arterial), nos quais a mortalidade é mais importante;
- É extremamente contagiosa, e as medidas enveredadas, mesmo coercivamente, pouca eficiência acabam por revelar no surgimento das vagas de doença, bem como na sua morfologia (olhando para outras realidades);
- Estou convencido que a política de Saúde para esta doença, para evitar os cenários devastadores de saturação que todos receamos, deve assentar na capacidade de absorção dos doentes aquando dos surtos, com medidas excepcionais, assentes na boa articulação de toda a estrutura de saúde do país, como aconteceu, e bem, por aqui na Bélgica (havendo ainda a possibilidade -nunca necessária- de transferência de doentes para países fronteiriços);
- Isto porque a ameaça mais real e imediata que a pandemia coloca aos países consiste, nesses momentos, na eventual incapacidade de efectuar essa absorção devidamente, com o prejuízo resultante da ausência de cuidados aos doentes (covid e não-covid) e potencial catástrofe sanitária decorrente;
- Estou céptico quanto à relação custo-benefício das várias medidas liberticidas e “economicidas”, experimentadas mais com base na fé (e no medo) do que em boa Ciência; e estou também expectante para ver o balanço final da evidência científica, em comparação com países que apostaram numa interferência mínima com a autonomia dos seus cidadãos ou com o funcionamento da economia e sociedade em geral. Sobretudo tendo em conta a sua baixa eficácia demonstrada pelas mesmas na subsequente evicção dos surtos. Ou seja, estou céptico quanto ao balanço final da qualidade da evidência que vai ser atribuída a essas medidas todas;
- Se pessoalmente tivesse que apostar, seria na higiene das mãos, na distanciação (e máscaras cirúrgicas quando essa não é possível em espaços fechados), na restrição de contactos próximos e na ventilação adequada dos espaços públicos fechados, tudo em regime não coercivo, promovido com boas campanhas de Saúde Pública que capacitassem a maioria da população a seguir as recomendações, com liberdade e responsabilidade;
- Esse balanço terá que ser económico (peso da recessão), mas também em termos de saúde mental e por outras patologias não-covid, que terão a sua morbi-mortalidade agravadas;
- O impacto nas crianças na Bélgica foi mínimo, em termos de frequência escolar, não se tendo porém acautelado a sua vida social e desportiva (com a importância que lhe quisermos dar, e que mais uma vez só será devidamente aferida no futuro);
- Custa-me a crer, tendo em conta a relação lockdown-curva de transmissão que verifiquei na Bélgica, que a evolução verificada em Portugal, na actualidade, tenha qualquer relação com as medidas impostas (pois aqui demorou sempre 2-3 semanas até se começar a verificar um putativo benefício na transmissão da doença); ou então não terá havido relação em nenhum dos dois países. Porém, o que para mim mostra-se evidente é que uma relação de causa-efeito torna-se, segundo estes dados, mais do domínio do… “imaginativo”.
Finalmente, concluiria dizendo que, a cada dia que passa, valorizo mais esta excelente e premonitória entrevista de Abril de 2020 feita a Johan Giesecke (e com a promessa final de outra passado um ano, que aguardo ansiosamente), um médico e epidemiologista de reputação mundial, Professor no Karolinska Institute em Estocolmo, mentor de Anders Tegnell do Instituto sueco de Saúde Pública – Folkhalsomyndigheten – (que antecedeu no cargo), conselheiro técnico e estratégico da OMS para questões infecciosas:
Destacaria as seguintes frases-chave, ainda actuais:
“The measures we take in Sweden must be evidence-based” [As medidas (de prevenção da transmissão) tomadas na Suécia devem ser baseadas na evidência científica].
“The strategy is: trying to protect the old and the frail” [A estratégia baseia-se na protecção dos idosos e grupos de risco].
“When you’ll start your exit strategy, you’ll have the dead that we had already” [Quando vocês iniciarem a vossa estratégia de saída [dos lockdowns], vocês terão as mortes que nós já tivemos].
“What you should be doing to lockout? Oh, you can’t!” [O que devem fazer para sair do lockdown? Oh!, vocês não conseguem].
“Did any politician who thought on these measures know how to get out of it? » [Será que algum político que tomou essas medidas sabe como sair delas?].
“I think the differences between countries will be small at the end” [Acho que, no final, as diferenças (da mortalidade) entre países será pequena].
“I don’t think you can stop the spreading” [Eu acho que não se consegue evitar a transmissão].
“How long do you think you can lock people like this?” [Quanto tempo pensa que se consegue ‘fechar’ as pessoas como estão?].
“People are not stupid” [As pessoas não são estúpidas).
Quanto às últimas duas, aposto que ele deve estar surpreendido….