Ana Lopes Galvão – Advogada
Este artigo visa informar os leitores relativamente à imposição de uso de máscara. Acontecimentos recentes e intervenções televisivas criaram na população e nos agentes de autoridade uma convicção errada que urge ser esclarecida. É composto por duas partes, a primeira com o objectivo de analisar e responder a questões práticas e a segunda com o fim de partilhar uma análise mais profunda.
PARTE I – Como passear ao ar livre
Em 27 de Outubro de 2020 foi publicada a Lei n.º 62-A/2020 relativa à “imposição transitória da obrigatoriedade do uso de máscara em espaços públicos”.
Perguntas-respostas rápidas:
Isto quer dizer que tenho de usar máscara na rua?
Não, desde que mantenha a distância de segurança recomendada pelas autoridades de saúde.
E se um agente de autoridade me quiser multar? E insistir no pagamento imediato?
O pagamento imediato é uma possibilidade dada ao suposto infractor de resolver logo a questão pagando. Não permite os agentes de autoridade imporem a cobrança imediata.
Se o agente insistir na identificação para efeitos de contraordenação deverá aguardar pela notificação e apresentar defesa dentro do prazo indicado, de preferência com recurso a advogado, pois existem vários argumentos que poderão levar ao arquivamento do processo.
Esta lei é composta por 10 artigos dos quais tem especial interesse analisar os seguintes:
Artigo 1.º
Objeto
A presente lei determina, a título excecional, a obrigatoriedade do uso de máscara para o acesso, circulação ou permanência nos espaços e vias públicas.
Importa notar que a obrigatoriedade em causa foi determinada a título excepcional e não para passar a regra, ou seja, tem carácter limitado. Também o sumário do diploma classifica a imposição como “transitória” significando “que dura pouco”, “passageira”, “breve”.
Esta lei entrou em vigor no dia 24 de Outubro de 2020 pelo período de 70 dias tendo sido prorrogada por mais 90 dias pela Lei n.º 75-D/2020, de 31 de Dezembro.
Cumpre questionar se um período inicial de vigência de 70 dias renovado por mais 90 dias é breve.
Artigo 2.º
Âmbito territorial
A presente lei aplica-se em todo o território nacional.
A obrigatoriedade em questão foi declarada para todo o país.
Artigo 3.º
Uso de máscara
1 – É obrigatório o uso de máscara por pessoas com idade a partir dos 10 anos para o acesso, circulação ou permanência nos espaços e vias públicas sempre que o distanciamento físico recomendado pelas autoridades de saúde se mostre impraticável.
2 – A obrigatoriedade referida no número anterior é dispensada:
a) Mediante a apresentação:
i) De atestado médico de incapacidade multiúsos ou de declaração médica, no caso de se tratar de pessoas com deficiência cognitiva, do desenvolvimento e perturbações psíquicas;
ii) De declaração médica que ateste que a condição clínica da pessoa não se coaduna com o uso de máscaras;
b) Quando o uso de máscara seja incompatível com a natureza das atividades que as pessoas se encontrem a realizar;
c) Em relação a pessoas que integrem o mesmo agregado familiar, quando não se encontrem na proximidade de terceiros.
É neste artigo que encontramos as condições da obrigatoriedade do uso de máscara em espaços públicos, portanto as situações que se devem verificar.
Em primeiro lugar, vemos que a obrigatoriedade é relativa ao acesso, circulação ou permanência em espaços e vias públicas, ou seja, inclui espaços abertos como seja praças e também ruas. Mas, em ambos os casos, só se o distanciamento físico recomendado pelas autoridades de saúde se mostre impraticável.
Reforça-se que a obrigatoriedade só existe quando o distanciamento físico não seja possível.
É interessante apurar qual é o distanciamento físico recomendado pelas autoridades de saúde, no caso de Portugal, a Direcção-Geral de Saúde (DGS). Em Abril de 2020 a DGS publicou o Guia do distanciamento social, que no ponto 4, relativo aos cuidados a ter em distanciamento social, diz “Manter, sempre que possível, uma distância superior a dois metros das outras pessoas” (recomendação já existente na Orientação n.º 010/2020 de 16/03/2020. Já na secção “cuidados a ter quando sai de casa” é dito: “Mantenha a distância mínima de 2m de outras pessoas”.
Posteriormente, em 14 de Maio de 2020, a DGS publicou as “Medidas Gerais de Prevenção e Controlo da Covid-19” que na página 5 diz “Manter uma distância de pelo menos 1,5-2 metros das outras pessoas” sem especificar se é só para espaços fechados ou também para espaços abertos.
A Organização Mundial de Saúde (OMS) reduziu a distância inicialmente recomendada de 2 metros para 1 metro, sendo agora a distância mínima recomendada de 1 metro. Também não existe especificação se esta recomendação se aplica igualmente a espaços aberto.
Naturalmente que haverá diferença entre uns e outros sendo a distância inferior em espaços abertos.
Voltando ao guia de Abril é curioso ver que naquela mesma secção dos cuidados a ter quando se sai de casa é dito “caso tenha indicação para usar máscara, deve colocá-la antes de sair de casa”. Esta recomendação mostra que o uso de máscara deve ser feito por quem tenha indicação para tal.
Indicação esta que só pode ser entendida como sendo de natureza médica. E se nesta altura o uso de máscara subentendia uma indicação porque razão tal deixou de acontecer e as autoridades de saúde passaram a recomendar para todas as pessoas em geral?
Manter o uso de máscara dependente de indicação médica não permitiria a existência da lei aqui em análise. O legislador nem mesmo poderia obrigar quem tivesse indicação médica pela simples razão que os conselhos médicos não podem ser impostos dependendo sempre de consentimento informado.
Ou estamos perante um dispositivo médico que tem de ser alvo de consentimento informado, ou estamos perante algo diferente de um dispositivo médico, que por maioria de razão também não pode ser imposto. Esta conclusão vale também para a obrigatoriedade de uso de máscara inicialmente prevista para os casos do artigo 13.º-B “Uso de máscaras e viseiras” do Decreto-Lei n.º 10-A/2020, de 13 de Março, relativo a escola, transportes, estabelecimentos comerciais, etc.
Ao invés, o legislador criou a obrigação e dispensou certas situações do uso de máscara, à semelhança do que tinha acontecido no Decreto-lei n.º 10-A/2020, relacionadas com condições médicas, com a natureza da atividade em realização e quando as pessoas integrem o mesmo agregado familiar e não se encontrem na proximidade de terceiros.
Voltando à lei só existe obrigatoriedade na forma prevista.
As ordens ilegais dos agentes de autoridade
Artigo 5.º
Fiscalização
A fiscalização do cumprimento das obrigações previstas na presente lei compete às forças de segurança e às polícias municipais, cabendo-lhes, prioritariamente, uma função de sensibilização e pedagogia para a importância da utilização de máscara em espaços e vias públicas quando não seja possível manter a distância social.
É importante notar que a função das autoridades é de sensibilização e pedagogia e não de intimidação e ameaça.
Realço ainda que estas acções são relativas às situações em que não seja possível manter a distância social.
Contudo, no início do ano de 2021 os agentes de autoridades terão recebido ordens para ordenar as pessoas a colocarem máscara na rua ameaçando de autuação e, até mesmo, detenção. Esta constatação decorre das notícias da comunicação social e de vários testemunhos de pessoas que foram abordadas neste sentido.
É notório, nos relatos a que temos acesso, que estes agentes foram erradamente instruídos e que desconhecem a lei que estão a aplicar.
Importa o cidadão fornecer a informação adequada de uma forma clara e urbana colaborando, na medida do possível, nomeadamente pela leitura do artigo 3.º, n.º 1 reforçando o aspecto do distanciamento e pela leitura do artigo 5.º alertando para a função sensibilizadora e pedagógica dos agentes de autoridade.
A inexistência de contraordenação, de crime de desobediência e de dever de identificação
Artigo 6.º
Regime contraordenacional
O incumprimento da obrigação estabelecida no artigo 3.º constitui contraordenação nos termos previstos no artigo 3.º do Decreto-Lei n.º 28-B/2020, de 26 de junho, na sua redação atual.
Não obstante tudo o referido, um agente de autoridade pode decidir autuar caso entenda que a distância de segurança recomendada não foi cumprida ou insista na colocação da máscara em desconhecimento da lei.
Neste caso o agente irá pedir a identificação à pessoa em causa para efeitos de auto de contraordenação.
Acontece que, salvo melhor opinião, esta contraordenação não existe. Isto porque o artigo 3.º do Decreto-Lei n.º 28-B/2020, para o qual remete este artigo 6.º da lei em análise, não foi alterado no sentido de incluir esta previsão.
De facto, aquele artigo 3.º somente visa os deveres estabelecidos nas alíneas do artigo 2.º, entre os quais o dever de uso de máscara ou viseira nas situações descritas na alínea b):
“A obrigatoriedade do uso de máscaras ou viseiras, nos termos do artigo 13.º-B do Decreto-Lei n.º 10-A/2020, de 13 de março, na sua redação atual: i) Para acesso ou permanência nos espaços e estabelecimentos comerciais e de prestação de serviços; ii) Nos edifícios públicos ou de uso público onde se prestem serviços ou ocorram atos que envolvam público; iii) Nos estabelecimentos de educação, de ensino e nas creches; iv) No interior de salas de espetáculos, de exibição ou de filmes cinematográficos ou similares; v) Nos transportes coletivos de passageiros”,
Mas onde não consta o dever de uso de máscara em espaço público.
Desta feita, as autoridades carecem de legitimidade para pedir a identificação aos cidadãos na medida em que só o podem fazer havendo contraordenação ao abrigo do artigo 49.º do Regime das Contraordenações,
Artigo 49.º
Identificação pelas autoridades administrativas e policiais
As autoridades administrativas competentes e as autoridades policiais podem exigir ao agente de uma contra-ordenação a respectiva identificação.
Por outro lado, não existe previsão de crime de desobediência, pelo que as autoridades não têm competência para fazer a cominação, ou seja, avisar o alegado infrator que tem de usar máscara, nem elaborar a correspondente participação criminal.
Por fim, e uma vez que não existe punição contraordenacional nem criminal, não pode a autoridade pedir legitimamente ao cidadão que se identifique. Isto porque este dever de identificação só existe nos casos previstos na lei, desde logo no artigo 250.º do Código de Processo Penal,
Artigo 250.º
Identificação de suspeito e pedido de informações
1 – Os órgãos de polícia criminal podem proceder à identificação de qualquer pessoa encontrada em lugar público, aberto ao público ou sujeito a vigilância policial, sempre que sobre ela recaiam fundadas suspeitas da prática de crimes, da pendência de processo de extradição ou de expulsão, de que tenha penetrado ou permaneça irregularmente no território nacional ou de haver contra si mandado de detenção.
2 – Antes de procederem à identificação, os órgãos de polícia criminal devem provar a sua qualidade, comunicar ao suspeito as circunstâncias que fundamentam a obrigação de identificação e indicar os meios por que este se pode identificar.
E na Lei n.º 5/95, de 21 de Fevereiro, com as respectivas alterações, sobre obrigatoriedade de porte de documento de identificação,
Artigo 1.º
Dever de identificação
1 – Os agentes das forças ou serviços de segurança a que se refere a Lei n.º 20/87, de 12 de Junho, no artigo 14.º, n.º 2, alíneas a), c), d) e e), e a Polícia Marítima, como força policial com competências de fiscalização e policiamento nas áreas de jurisdição do sistema da autoridade marítima, podem exigir a identificação de qualquer pessoa que se encontre ou circule em lugar público, aberto ao público ou sujeito a vigilância policial, sempre que sobre a mesma pessoa existam fundadas suspeitas de prática de crimes contra a vida e a integridade das pessoas, a paz e a Humanidade, a ordem democrática, os valores e interesses da vida em sociedade e o Estado ou tenha penetrado e permaneça irregularmente no território nacional ou contra a qual penda processo de extradição ou de expulsão.
2 – Os mesmos agentes só podem exigir a identificação depois de exibirem prova da sua qualidade e de terem comunicado ao identificando os seus direitos e, de forma objectiva, as circunstâncias concretas que fundam a obrigação de identificação e os vários meios por que se pode identificar.
3 – A omissão do dever de comunicação a que se refere o número anterior determina a nulidade da ordem de identificação.
Posto isto, primeiro os agentes têm eles próprios de se identificar, segundo têm de comunicar à pessoa abordada os seus direitos e de apresentar as circunstâncias concretas que fundam a obrigação de identificação que só existe caso existam fundadas suspeitas de prática de crimes contra a vida e a integridade das pessoas, a paz e a Humanidade, a ordem democrática, os valores e interesses da vida em sociedade e o Estado (ou permanência irregular em Portugal ou com processo de extradição ou expulsão ou mandato de detenção), e terceiro têm de comunicar os meios pelo quais a identificação pode ser feita.
Lamentavelmente, ocorrem situações de abuso de poder por parte de agentes de autoridade, caso em que a pessoa alvo deverá agir de acordo com o seu bom senso sabendo que poderá mais tarde reagir judicialmente se entender. Será conveniente a existência de prova testemunhal e, sendo possível, gravações da ocorrência para efeitos, não só de defesa do visado, mas também de apresentação participação criminal contra os agentes responsáveis havendo fundamento e intenção.
Acaba aqui a análise mais elementar desta lei. No entanto, se quiser explorar mais a propósito dela e ainda houver questões não respondidas convido-o a ler a parte II.