
Não é apenas a idade ou as comorbidades que influenciam a probabilidade de sobrevivência à covid-19. Num país, como Portugal, cujo sistema de saúde entrou em verdadeiro colapso em Janeiro, a probabilidade de morrer ou viver depende também muito de se ter tido a sorte ou o azar de contrair a doença no Verão ou no Inverno, sobretudo porque a eficácia no tratamento registada pelos hospitais se mostrou muito distinta ao longo da pandemia. Aqui, no FAROL XXI apresenta-se uma avaliação sobre a evolução da taxa diária de mortalidade dos internamentos ao longo da pandemia, revelando-se também uma inédita análise à eficácia dos hospitais entre Março e Junho de 2020.
Pedro Almeida Vieira

Sobreviver à covid-19 não depende apenas da idade ou das comorbidades. Apesar de ainda escassearem dados em Portugal – em grande medida por a Direcção-Geral de Saúde (DGS) colocar obstáculos à sua cedência, mesmo aos académicos –, a pouca informação disponível permite concluir que existem, e continuarão a existir, dois factores determinantes: o período em que se ficou doente (a necessitar de internamento) e o estabelecimento hospitalar que prestou assistência. Nesta equação entrará também, obviamente, a pressão da procura hospitalar, como se observou em Janeiro deste ano, quando o número de internados subiu consideravelmente, causando um descontrolo absoluto no tratamento dos doentes e, em consequência, uma mortalidade absoluta sem precedentes.
Com efeito, se se analisar desde Março de 2020 a evolução da taxa diária de mortalidade dos internados por covid-19 – assumindo, neste cálculo, a média móvel de 7 dias e que, para efeitos de indicador, os óbitos se registaram, na sua totalidade, em meio hospitalar –, observa-se que, nos primeiros meses, esse parâmetro foi bastante variável e irregular, chegando a atingir um pico acima dos 4% no final de Março, mas quando havia ainda pouco mais de uma centena de internados. Quando a situação estabilizou, a partir de Abril, e até finais de Maio, a taxa diária de mortalidade passou a estar sempre abaixo dos 3%.

Durante a parte final da Primavera, e em todo o Verão, a situação acalmou, em parte pela menor pressão hospitalar – os internados foram sempre em número inferior a 500 –, mas também pela melhoria no tratamento em virtude da introdução de novas terapêuticas para a covid-19 e do abandono de métodos prejudiciais a doentes mais idosos. Por exemplo, o uso sistemático de ventilação mecânica em idosos – que foi extramente prejudicial na Itália e Espanha, durante Março e Abril, porque acabou por aumentar a morte dos pacientes – nunca foi uma opção muito seguida em Portugal. Entre Junho e Setembro, a taxa diária de mortalidade dos internados esteve em Portugal quase sempre abaixo de 1,5%, e, em grande parte do período, ficou aquém de 1%. Ou seja, a probabilidade de sobrevivência à covid-19 atingiu, neste período, o seu ponto mais alto.
Com a chegada do Outono, este indicador piorou substancialmente. Ou seja, o risco de morte aumentou entre os internados à medida que cresceu a pressão sobre os hospitais. Por exemplo, no primeiro dia de Outubro esta taxa era ainda de 1,0%, quando os internados (média móvel de 7 dias) eram 657. Um mês mais tarde (1 de Novembro) subira para 1,9%, havendo então 1.950 internados. Ou seja, o número de óbitos então registado não se devia já apenas ao aumento no número de infectados (e internados), mas sobretudo ao agravamento da eficácia de tratamento nos hospitais. Por outras palavras, começava a ser evidente que morrer ou sobreviver a esta doença em Portugal dependia também do momento em que se ficava doente.
Os sinais de degradação da eficácia do Serviço Nacional de Saúde (SNS) foram sendo reforçados ao longo dos últimos meses de 2020. Em finais de Novembro, com o número de internados a rondar já os três mil, a taxa diária de mortalidade rondava os 2,5%. Significava isto que, nesta altura, por cada 1.000 internados morriam 25 pessoas por covid, o que contrastava com 15 se a taxa se tivesse mantido em 1,5%.
O valor da taxa em 2,5% estabilizou neste patamar até finais de Dezembro, mas em Janeiro de 2021 o SNS entrou em evidente colapso, sobretudo na segunda metade daquele mês. Com a subida do número de internamentos agravou-se a taxa de mortalidade. No dia 9 de Janeiro atingiu os 3% (com 3.770 internados), cinco dias depois alcançou 3,5% (com 4.560 internados), no dia 26 estava já nos 4% (com 5.922 internados) e chegaria mesmo aos 4,5% em 28 de Janeiro (com 6.627 internados).

Note-se que, para 6.627 internados, se se confrontar uma taxa diária de mortalidade de 4,5% com uma taxa de 2,5% teremos, respectivamente, 298 e 166 óbitos. Isto é, o colapso do SNS custou por dia, em alguns períodos de Janeiro, mais de uma centena de mortes a mais. A falta de investimento por parte do Governo na preparação de uma segunda vaga aumentou assim a mortalidade por covid-19 para níveis absurdos. Essa foi a principal razão para que Portugal tivesse atingido uma mortalidade diária que chegou a superar os 300 óbitos num só dia, quando no mesmo período poucos eram os países europeus com valores acima dos 100 óbitos padronizados à população portuguesa (i.e., número de mortes numa proporção aos habitantes de Portugal).
Para confirmar o quão relevante é o período em que se ficou doente, basta observar que ao longo do presente mês de Fevereiro – muito por força da redução das infecções e da diminuição dos novos internamentos, já que a redução dos internados se fez muito pelas vagas alcançadas pelas mortes que foram ocorrendo –, a capacidade de resposta do SNS melhorou substancialmente. A taxa diária de mortalidade situa-se, agora (dia 19 de Fevereiro), nos 2,4%, níveis similares aos de Novembro e Dezembro do ano passado. Ser hoje um doente-covid num hospital português é, portanto, muito melhor do que sê-lo no fatídico mês de Janeiro. Em suma, necessariamente tem de se concluir que a razão principal é uma só: afinal, o SNS não se preparou para um nível de internados muito acima dos 3.000, mesmo se em Outubro a ministra da Saúde, Marta Temido, garantia que existiam 17.700 camas destinadas aos doentes-covid. (vd. comunicado do SNS)
Um outro factor fundamental – e que deveria ser alvo de análise em detalhe sobretudo durante o colapso do mês de Janeiro – refere-se à eficácia intrínseca de cada hospital ou centro hospitalar no tratamento de doentes-covid. Estes dados nunca foram disponibilizados pelo SNS ou pela DGS, mas mesmo assim obteve-se acesso, por fonte sigilosa, de registos hospitalares de todas as unidades de saúde que trataram doentes-covid na primeira fase da pandemia, entre Março e Junho de 2020, e totalizando um pouco menos de cinco mil pacientes. Nestes dados constam apenas a identificação da unidade de saúde (hospital ou centro hospitalar), o sexo e idade do doente, a data de admissão, o tempo de internamento e o desfecho, incluindo se houve passagem pelos cuidados intensivos (UCI). Nesta fase, a taxa de hospitalização – internados por 100 casos positivos – rondava os 11%, enquanto a taxa de letalidade era de 3,6%. Note-se que este último valor tem tendencialmente vindo a descer, estando agora apenas nos 2%. Saliente-se também que ainda se ignora quantas pessoas, até agora, foram hospitalizadas com covid-19, uma vez que a informação disponibilizada diariamente pela DGS diz apenas respeito aos internamentos existentes, sendo assim um stock diário que é função das pessoas já internadas em dias anteriores e dos doentes admitidos nesse dia, bem como (em subtracção) dos óbitos e altas médicas contabilizados nesse dia. Informações não oficiais (e não confirmadas) apontam para que, até agora, os hospitais portugueses tenham recebido cerca de 30 mil pessoas com covid-19, o que indicará uma taxa de internamento de cerca de 4%.
A análise estatística aos dados hospitalares da primeira fase da pandemia permite evidenciar, sem margem para dúvidas, que para o desfecho (recuperação ou óbito) não foi nada indiferente o local do tratamento. Considerando também o risco dos pacientes em função do respectivo grupo etário – e, nessa medida, as distintas probabilidades de sobrevivência face à doença –, a análise de regressão, realizada também com ajustamento à idade, mostra distintos comportamentos entre hospitais, possibilitando distinguir aqueles que estiveram bastante bem dos outros que apresentaram desempenhos sofríveis ou mesmo maus.
Com efeito, considerando nesta análise apenas os 35 hospitais e centros hospitalares que trataram mais de 10 doentes-covid nesta primeira fase da pandemia – e que, por opção, apenas se identificam por localização geográfica (Norte, Centro, Lisboa e Vale do Tejo e Sul, agregando Alentejo e Algarve) – verifica-se que 15 ficaram aquém do expectável (bolas vermelhas, no gráfico) e 20 tiveram um desempenho aceitável ou mesmo bom (bolas verdes, no gráfico). Conforme se pode observar de uma forma mais detalhada no quadro em anexo, o nível de desempenho não dependeu apenas da taxa de mortalidade, mas também, bastante, da tipologia dos doentes recebidos. Por exemplo, o hospital NOR-8 (região Norte), apesar de ter apenas uma taxa de mortalidade de 16,3% (47 óbitos em 288 pacientes), mostrou um desempenho fraco, uma vez que os seus doentes apresentavam uma idade média de apenas 56,5 anos. Ou seja, com essas idades seria expectável que morressem menos pessoas. Ao invés, por exemplo no hospital CEN-3 (região Centro), o desempenho pode ser considerado bom mesmo com uma taxa de mortalidade superior (20,2%, correspondente a 62 óbitos em 307 pacientes), porque a idade média dos doentes era bem superior (72,2 anos).

Na verdade, embora pelas razões expostas se opte pela confidencialidade na identificação dos hospitais, esta análise preliminar pretende apenas salientar que o desempenho não depende da tipologia dos doentes (e.g., idade) nem da dimensão dos hospitais. Por exemplo, pode afirmar-se, sem quebra da confidencialidade, que nos hospitais do Grande Porto e da Grande Lisboa (com unidades de saúde de maior dimensão) tanto se observa desempenhos bons como maus, e que houve pequenos hospitais do interior do país com óptimos desempenhos.
Na verdade, tal como se deve ter observado em Janeiro, os desempenhos mais sofríveis durante a Primavera de 2020 concentraram-se nos hospitais das regiões com maiores surtos. Com efeito, na região Norte contabilizam-se oito hospitais (ou centros hospitalares) com desempenho sofrível e apenas cinco com desempenho bom, enquanto este rácio é muito mais favorável nas restantes regiões: Centro com seis hospitais bons e um mau; Lisboa e Vale do Tejo com sete bons e cinco maus; e Sul (Alentejo e Algarve) com dois bons e um mau.
Mais do que avaliar hospitais (e o desempenho dos profissionais de saúde, que não são milagreiros, antes têm desempenhos em função dos meios que um Governo lhes disponibiliza), esta análise serve sobretudo como demonstração das diferenças que podem existir ao longo do país no tratamento da covid-19. E pretende mostrar também que é possível, em tempo útil, e de forma muito fácil, acompanhar o desempenho dos hospitais, se assim o Governo quiser, porquanto esta informação está acessível no SNS. E mais: esta avaliação do desempenho não é para elogiar ou penalizar hospitais; serve sim para identificar os bons desempenhos e corrigir os maus.
Em suma, uma avaliação serve propósitos nobres: melhorar mesmo quando se é bom. Infelizmente, a DGS não pensa o mesmo, talvez por saber que se é mau. E assim nada mais faz, nesta matéria, do que esconder dados, pensando que, escondendo-os, os problemas desaparecem. Não desaparecem; apenas se tornam invisíveis aos nossos olhos, embora sejam contabilizáveis em número de caixões.