
Pedro Almeida Vieira | Engenheiro Biofísico e Economista


Portugal está refém de um minguado e raquítico Serviço Nacional de Saúde (SNS).
E é refém de um Governo que prometeu, em Outubro do ano passado, que existiriam 17.700 camas para enfrentar uma eventual segunda fase da pandemia, mas que deixou que os hospitais entrassem em colapso quando os internados começaram a ultrapassar os três mil.
É refém também de uma ignara estratégia de Saúde Pública assente no adiamento sine die da assistência médica básica (consultas, exames, diagnósticos e cirurgias), como se todas as outras doenças se tivessem suspendido durante uma pandemia.
É igualmente refém de uma cultura de Estado promotora da sonegação e manipulação de informação, que conseguiu, ao longo de quase um ano e de forma incólume, desviar o foco do principal problema da pandemia – os lares –, através de manobras de diversão.
É, por outro lado, refém de uma comunicação social – mostrando, como nunca, a sua debilidade financeira e impreparação estrutural, ingloriamente patente num jornalismo inculto, acrítico e imoral – que tudo fez para alimentar, qual terrorismo mediático, uma Narrativa Oficial assente exclusivamente no medo, abandonando assim as suas nobres funções de informação, formação, crítica e debate

É, ainda mais, refém de uma Academia que aceita, por exemplo, que um engenheiro geográfico pateticamente brinque com modelos matemáticos, usados em previsão climática, aplicando-os à Epidemiologia, e que, com isso, justifique profundas restrições à vida profissional de milhões de pessoas.
É, mais ainda, refém de um Estado que nunca se incomodou em investir numa administração pública – leia-se, Direcção-Geral da Saúde – capaz de apresentar uma resposta eficaz e rápida perante uma pandemia, bem evidente no singelo facto de nem sequer possuir, nos seus quadros, um único epidemiologista digno desse estatuto.
E, depois de tanta coisa – testes, Rt’s, variantes e o diabo a quatro –, é por fim refém de uma suposta necessidade de se reduzir para 245 camas de cuidados intensivos (segundo o presidente da Associação de Médicos Intensivistas) antes de se poder livrar de alguns “grilhões”.
Eis o absurdo de um país: a sua gestão económica e social, a vida de 10 milhões de pessoas, determina-se pela ocupação de camas de unidades de cuidados intensivos.
Mas mais absurdo é observar como este tipo de mensagens entra tão facilmente, com a ajuda da imprensa, no âmago das pessoas. Foi com os casos positivos; foi com os Rt’s (que servem para coisa nenhuma se usados numa escala meramente nacional ou regional); foi com as máscaras (e desconfio que não haverá uma sem duas); foi com os internamentos totais e mais as ambulâncias a fazerem fila; foi com o Natal; foi com o (mau) comportamento dos outros; foi com as variantes. E é agora com os cuidados intensivos. Curiosamente, nunca foi com os mortos, que desses o Governo nunca os assumiu como seus (da sua responsabilidade), mas sim fruto de uma mera fatalidade.
O crédulo povo português, aquele que está refém de um Governo distópico, não entenderá que a pandemia não depende apenas do vírus e sua letalidade, nem tão-pouco de restrições “para meter tudo em ordem”, mas depende muito (e mesmo muito) da estrutura epidemiológica e da capacidade de resposta de uma sociedade, designadamente ao nível da assistência médica.
O crédulo povo português nunca inferirá que o medo, o pânico, agravam os efeitos de uma pandemia. Desde o início de Março, os portugueses fogem mais dos hospitais do que o diabo da cruz, mesmo se os sintomas são gravíssimos (pulseiras vermelhas e laranjas da triagem de Manchester). Por exemplo, veja-se agora o último episódio das aventuras do engenheiro geográfico martelado em epidemiologista: em 21 de Janeiro fez ele profusa apologia do medo como estratégia, e nos 10 dias seguintes o afluxo às urgências dos hospitais diminuiu 20% face aos 10 dias anteriores. Seria caso para dizer apenas que foi sapateiro que em vez de meias-solas andou em desafinações desatinadas, se não fosse o caso de, na verdade, as suas palavras se terem parecido mais com uma kalashnikov do que com um rabecão. Quantas pessoas terão morrido de doenças súbitas por medo de entrar num hospital?
O crédulo povo português jamais perceberá que uma grande parte da mortalidade ao longo de 2020 e início deste ano, bem como daquela que se registará num futuro mais próximo, estará relacionada com suspensão da actividade normal do SNS. Provavelmente, quando as pessoas começarem a morrer mais de cancros e outras doenças crónicas tratáveis, encontrar-se-ão desculpas: no limite, se porventura as vítimas tiverem tido covid-19 nem que seja muitos meses antes, culpar-se-á o SARS-CoV-2, apresentando as sequelas como causa directa e única da desdita.
O crédulo povo português não discernirá que a falta de assistência médica desde Março deixou muitas pessoas, sobretudo idosas, ainda mais vulneráveis a infecções respiratórias, como a covid-19, propiciando um maior número de desfechos fatais neste Inverno. Portugal foi, de longe, o pior país mundial durante o mês de Janeiro.
O crédulo povo português terá dificuldade de compreender que se em Janeiro chegavam a morrer por dia 45 doentes-covid por cada 1.000 internados, e agora se perdem 20 vidas por 1.000 internados, essa diferença não se deveu à maior “virulência” da covid-19 nem à súbita perda de brio dos profissionais de saúde; deveu-se exclusivamente ao colapso naquele mês de um depauperado SNS. Deveria ser sempre isto uma responsabilidade directa do Governo. E não uma culpa dos doentes – que, aliás, aparentemente, são sempre inocentes vítimas cumpridoras infectadas pelos mais irresponsáveis, mas em tal sequência e cadeia de causas que a montante todos são vítimas e nenhum algoz se encontra.
O crédulo povo português acreditará sempre num homem de suposta Ciência, mesmo com ares de franco-atirador, que utiliza jargões do tipo “dinâmicas de um processo natural não-linear” e “segunda derivada da incidência” quando mira a sua bola de cristal (leia-se, modelos matemáticos), com a qual, mui graciosamente, dá cobertura a restrições do Governo não-assentes na evidência – e isto mesmo quando, de forma patente e evidente, falha ele sempre as previsões, umas vezes por excesso, outras por defeito. E nunca por pouco em ambos os casos.
O crédulo povo português em tudo acreditará, porque já se convenceu que isto é como a Gripe Espanhola; que a culpa de estarmos em sexto lugar nos piores países do Mundo é de todos menos do Governo; que todos podem morrer pela covid-19; que todos ficarão com sequelas mesmo que nunca tenham tido sintomas (até porque, lá está, consta por aí que o principal sintoma da covid-19 é não se ter sintomas, donde se conclui que toda a gente sofrerá irremediáveis sequelas que a conduzirá à morte); que todos apenas se salvarão com a toma da vacina ou as suas sobras; que todos só podem almejar a sobrevivência se se mantiver o estado de emergência e todas as demais restrições (escolas e livrarias incluídas) enquanto houver mais de 245 camas de cuidados intensivos ocupadas por doentes-covid.

Para esse estrambólico objectivo, contas feitas, será necessário que o total de internamentos fique abaixo dos 1.750, ou seja, cerca de metade do número actual. Se se considerar que o ritmo da diminuição do número de internamentos será previsivelmente menor a partir desta semana – foi em média de 225 por dia nos últimos 10 dias, mas em desaceleração, até por uma razão feliz: vagam agora menos camas pela parcela dos mortos – e que os internados-covid nos cuidados intensivos ocupam as camas por mais tempo do que nas enfermarias, temos confinamento garantido por mais duas ou três semanas. Como estaremos então próximos da Páscoa, a dupla Marcelo-Costa manterá tudo “fechado” até ao final da primeira semana de Abril. Mesmo se, entretanto, as infecções estiverem em valores baixos (e se em valores demasiado baixos, aumentar-se-ão os testes, sobretudo os de antigénio).
Aliás, se nessa altura os casos positivos estiverem baixos nunca será porque, enfim, o vírus apresenta um comportamento sazonal, e desaparece por períodos para reaparecer mais tarde. Será, sim, por especial favor do Governo. O vírus a desaparecer será sempre por decreto governamental. E sob eterno agradecimento do crédulo povo português libertado finalmente das agruras do sequestro.