André Gago | Ator, Encenador e Escritor
A resposta de António Costa à Carta Aberta que lhe foi dirigida (vd. aqui), questionando-o sobre a ausência da Cultura, os seja, das Indústrias Culturais e Criativas (ICC), no plano de Recuperação e Resiliência – proposto por Portugal à União Europeia no quadro da Estratégia Portugal 2030, aprovada pelo Governo no início deste ano –, não podia ter sido mais clara: o Primeiro-Ministro e o Governo não reconhecem as ICC como um sector estratégico para Portugal.
Há algo de trágico nisto: as ICC são um motor da economia e do desenvolvimento, representando, de acordo com os estudos conhecidos, 3,3% do Produto Interno Bruto do país. Ou seja, o Governo ignora todo um sector, que tem um peso, em termos económicos, mas não só, superior a outros sectores da economia tradicionalmente considerados como essenciais.
É trágico para o conjunto das ICC que tenha sido desenhada uma estratégia que as deixa de fora nos próximos 19 anos, pelo menos até 2030.
É trágico que não haja, no Conselho de Ministros, nas tutelas da Cultura, da Economia, das Finanças, do Trabalho e Segurança Social ou do Turismo, a percepção da importância estratégica das ICC, da sua vitalidade económica, da sua relevância social, da sua capacidade de gerar emprego e, sobretudo, da riqueza que a Cultura cria e promove em todos esses eixos, e que importa associar a uma estratégia articulada, ao contrário do que acontece actualmente.
É particularmente trágico, porque se trata de um sector que foi fortemente afectado pela pandemia e que, sem uma reorientação estratégica que o coloque numa situação de paridade proporcional com os outros sectores da sociedade, a nível de investimento, regulação e protecção social, enfrentará uma recuperação dolorosa e desarticulada.
É trágico, enfim, porque a União Europeia identificou este sector como prioritário, com recomendações concretas de que 2% dos fundos comunitários fossem afectos directamente às ICC, orientação que foi reforçada pelo estudo da Ernst & Young (promovido pelo GESAC — Grupo Europeu de Sociedades de Autores e Compositores), o qual recomenda como primeira medida, que essa alocação financeira de 2% se faça precisamente no quadro do Plano de Recuperação e Resiliência.
Mas há algo esclarecedor na resposta de António Costa: ele vem dizer que a Cultura consta do PRR, ainda por cima num quadro que prevê uma importante dotação financeira: “Entre as Agendas/Alianças Mobilizadoras de Investimento e Inovação, a produção cultural e as indústrias criativas constam como áreas estratégicas que integram um programa de investimento em criatividade e inovação, com a dotação de 558 milhões de euros”, afirmou, na sua resposta à Carta Aberta.
Vejamos: desse quadro constam as ciências da vida, medicamentos e dispositivos médicos; os novos sistemas e serviços espaciais para a segurança e observação Terra/Mar/Clima; a aeronáutica ligeira de nova geração; a automação industrial, robótica e integração de sistemas industriais; e, finalmente, uma plataforma para a produção cultural e indústrias criativas — que ninguém sabe o que é.
É isto incluir as ICC como sector estratégico? Alguém, com base no puro bom senso, vê aqui a identificação estratégica de um sector? Acontece que, mesmo que a referida plataforma venha a existir e mostrar-se útil, num sector onde se inclui tecnologia espacial e robótica, um mero exercício de cálculo de probabilidades nos leva sem esforço à percepção de que sectores absorverão a maior parte dessa verba. Mas a questão nem é essa.
A questão é que o Primeiro-Ministro tem uma visão instrumental da Cultura. E por isso diz que ela poderá ter um papel relevante “no quadro dos programas de inclusão social, de valorização do património público, de intervenção nas áreas metropolitanas ou de transformação da paisagem dos territórios de floresta vulneráveis”, sendo beneficiada também por “investimentos na eficiência energética ou na infraestrutura digital de equipamentos culturais” ou pela “capacitação digital dos agentes culturais”, que considera “exemplos óbvios”, além da “refuncionalização de espaços para atividades na área da cultura, espaços ateliers — ou a valorização cultural do património público” e do apoio a “20 mil estudantes em cursos de ensino superior em áreas de ciência, tecnologia, engenharia, artes/ humanidades e matemática”.
São, com efeito, exemplos óbvios de uma forma redutora e instrumental de olhar para o sector Cultural: são mesmo exemplos risíveis, de carácter pontual e local, vagos e indeterminados, manifestação de boas intenções que não emanam de um levantamento real de necessidades e que persistem numa ideia da Cultura como uma prestação de serviços, adicional e complementar dos grandes eixos de desenvolvimento, ou seja, aquela cereja que fica bem em cima do bolo dos sectores “realmente importantes”. Ora, para cumprir esse papel, os agentes culturais não precisam, realmente, de uma Estratégia nem de um Plano.
Sabemos também que estas visões empedernidas não poderão acomodar propostas de fundo em sede de discussão pública que, para mais, termina a 1 de Março. A delimitação estratégica está feita, e não será alterada. Os pelo menos 280 milhões que deveriam ser canalizados para as ICC não o serão.
Numa grave crise pandémica, os agentes que dão vida às ICC, sector maior da economia portuguesa, que emprega mais de 130 mil pessoas, que viu milhares dos seus trabalhadores serem deixados para trás, serem maltratados pelas instituições que empregam precariamente muitos deles, e serem abandonados pelo Estado Social, não se podem conformar com esta falta de visão estratégica.
Não será possível, por exemplo, alavancar o esforço exigível à máquina da segurança social para passar a tratar estes portugueses em pé de igualdade com os demais, sem se ter, entretanto, olhado para o sector e para o conjunto das ICC de forma realista, moderna e ajustada aos desafios que as nossas sociedades defrontam.
É disto que falamos quando nos referimos à falta de visão estratégica para a Cultura manifestada por este governo. Se a necessidade de mudar este estado de coisas é gritante, não é de um governo que apresenta uma visão antiquada, enfadada, paternalista e condescendente em relação à Cultura que poderemos esperar o rasgo visionário de que tanto precisamos para uma efectiva mudança de paradigma.