Pedro Almeida Vieira | Engenheiro Biofísico e Economista
Execute-se um simples teste comparativo. Pesquise-se no Google, na secção Notícias, por “Bolsonaro+covid”, “Trump+covid” e “Costa+covid”. Percorrendo as primeiras páginas para o caso português, predominam largamente as notícias da pandemia com destaque para o nosso activo, responsável, assertivo, prudente e solidário primeiro-ministro. Lê-se António Costa a confirmar o confinamento (o 12º em apenas um ano). Lê-se António Costa a prometer desconfinar apenas a partir de 11 de Março. Lê-se António Costa a abordar a importância de um certificado europeu para se viajar até ao Verão. Lê-se António Costa a avisar que se vive “fase perigosa” e de “ilusão”. Lê-se António Costa a garantir que não há inquéritos epidemiológicos em atraso. Lê-se ainda António Costa em reunião com o Presidente da República para discutir estratégia do Governo. E lê-se até António Costa a defender partilha de vacinas com África. Não há, nas primeiras cem notícias, uma única que lhe seja desfavorável. E presume-se que também não haja nas mil seguintes, ou 10 mil. Ou em nenhuma de todas. Na verdade, não me recordo de uma única crítica contundente na imprensa contra a estratégia governamental (ou falta dela) em relação à pandemia; de uma única crítica sibilina que imputasse culpas pelo morticínio de Janeiro. Não incluo aqui as auto-críticas de António Costa, que, à falta de críticas, se mete de quando em vez em reflexões introspectivas, mas sempre em tom paternalista – por exemplo, quando se referiu à mensagem no Natal por ele feita, que terá sido mal percepcionada pelos portugueses –, num estilo, enfim, similar ao de um pai que lamenta os desacatos do filho em noitada de copos.
Juntar Bolsonaro e covid-19 é, por seu lado, garantia de varapau. O Presidente do Brasil – que assumidamente sempre menorizou a pandemia e tem tido uma gestão no mínimo errática e instável – é um apetecível saco de boxe da imprensa brasileira. A imprensa portuguesa também trata de zurzir nele, taxando-o, forte e feio, directa e indirectamente, de irresponsável, no mínimo. Eis Jair Bolsonaro – a antítese do grande estadista António Costa, o activo, responsável, assertivo, prudente e solidário primeiro-ministro português. Veja-se um pequeno exemplo, por uma rápida recolha noticiosa dos últimos três dias, de como a nossa imprensa olha para a acção de Jair Bolsonaro:
1 – Com o país a atingir recordes, Bolsonaro critica governadores que adotam medidas restritivas para combater covid-19, Jornal i (27/02/2021)
2 – Em dia de recorde de mortes por covid-19 no Brasil, Bolsonaro falou contra uso de máscaras, Público (26/02/2021)
3 – Bolsonaro critica novas medidas de isolamento apesar do agravamento da pandemia, SIC (26/02/2021)
4 – Covid-19: Brasil bate recorde de mortes, RTP (26/02/2021)
5 – Brasil ultrapassa 10,4 milhões de infeções um ano após o primeiro caso de covid-19, SIC (26/02/2021)
6 – Brasil ultrapassa as 250 mil mortes por Covid-19 ao completar um ano de pandemia, SIC (25/02/2021)
7 – Covid-19: Bolsonaro volta a pôr em causa cláusulas nos contratos com a Pfizer, SIC (25/02/2021)
8 – Campanha usa fotomontagem de Bolsonaro nu para destacar papel do jornalismo na pandemia, SIC (25/02/2021)
9 – Vírus continua fora de controlo um ano após chegar ao Brasil, Lusa (25/01/2021).
Podia-se fazer similar exercício para o presidente dos Estados Unidos até ao mês passado, mas prescindo de relembrar aquilo que todos sabem: Trump e Bolsonaro corporizam a irresponsabilidade na gestão da pandemia. E, com efeito, os números estão supostamente aí para a provar: Estados Unidos e Brasil estão no topo mundial da mortalidade atribuída à covid-19, com respectivamente, 524.669 e 254.263 óbitos, segundo os dados referentes a 26 de Janeiro de 2021. Três em cada 10 mortos por esta doença eram norte-americanos ou brasileiros. Por sua vez, Portugal – país do activo, responsável, assertivo, prudente e solidário primeiro-ministro António Costa – encontra-se na 25ª posição, com 16.276 vítimas – portanto, um português morto por cada 156 óbitos em todo o Mundo. Eis assim as contas à boa maneira de um qualquer jornal de referência português, com valores absolutos, porque todas as vidas contam: até á referida data, tinham morrido pela novel doença mais 508.393 norte-americanos do que portugueses, e mais 237.987 brasileiros do que portugueses.
Esta é a perspectiva favorável daqueles que acreditam, piamente, que António Costa é um estratega activo, responsável, assertivo, prudente e solidário.
Porém, embora por vezes uma determinada perspectiva se torne delicodocemente dominante, e quase unânime, nem sempre esses predicados reflectem a verdade, a realidade. A imprensa portuguesa, e a esmagadora maioria da população portuguesa, parece não acordar para uma realidade: Portugal é o sexto país (ou sétimo, se incluirmos San Marino) com maior mortalidade relativa associada à covid-19. Encontra-se apenas atrás da Bélgica, Eslovénia, Reino Unido, República Checa e Itália (por uma unha negra). E nem vale a pena falar da mortalidade total. Ou seja, está à frente dos Estados Unidos. Está à frente do Brasil. Está à frente da Espanha e da Suécia. Está uma desgraça, e o povo português pensa ainda que tudo foi culpa do Natal, dos maus comportamentos, das variantes. Pensa que foi de tudo menos do colapso do Serviço Nacional de Saúde (SNS) – que tinha prometidas 17.700 camas, mas entrou em ruptura a partir dos três mil internamentos. Jamais pensa que foi culpa da (ausência de) estratégia do primeiro-ministro António Costa que é político muito mais activo, responsável, assertivo, prudente e solidário do que é Jair Bolsonaro, no Brasil, e do que era Donald Trump, nos Estados Unidos.
Observar a evolução (e distribuição) dos óbitos entre Portugal e Brasil, e ainda entre Portugal e os Estados Unidos, desde o início da pandemia, e depois continuar achando que não existem responsabilidades políticas na gestão da pandemia no nosso país, constitui um exercício de cegueira cívica ou de estrabismo ideológico. Os últimos meses em Portugal foram uma catástrofe inimaginável mesmo perante as supostas “ovelhas negras” chamadas Brasil e Estados Unidos. E não foi apenas em Janeiro.
Se se padronizar os óbitos das ditas “ovelhas” em função da população portuguesa – que é a forma mais correcta de avaliar o desempenho entre países – verifica-se que, apesar de todas as críticas (justas em muitos aspectos, admita-se) contra Trump e Bolsonaro, Portugal começou a apresentar uma evolução pior do que o Brasil e os Estados Unidos a partir de finais de Outubro. O SNS dava já sinais de estar impreparado para um vírus com tendência sazonal. Nessa altura, estes dois países tinham mais do dobro dos óbitos-covid (padronizados) do que Portugal.
O reforço dos hospitais não se fez, parecendo fazer-se. Fez-se no papel, com o Plano da Saúde para o Outono-Inverno 2020-21, aprovado em finais de Setembro; e com uma task force, claro, que nunca deu devidos sinais de vida. Ainda no início de Novembro, Portugal ultrapassou a fasquia dos 50 óbitos, e não mais conseguiu ir para baixo até finais de Fevereiro. Pelo contrário, foi sempre piorando, até ao colapso final em Janeiro deste ano, com os registos a chegarem às 291 mortes (média móvel de sete dias). O máximo diário (303 óbitos) foi atingido duas vezes (27 e 30 de Janeiro). Nem neste momento se ouviu a imprensa portuguesa em acrimónias contra o activo, responsável, assertivo, prudente e solidário líder do Governo português, António Costa. Note-se que o pico de óbitos no Brasil corresponde a 58 óbitos em Portugal (em média móvel). E no caso dos Estados Unidos, o pico situa-se nos 105 óbitos-equivalente.
Na verdade, se há país com a pandemia descontrolada, e sem controlo político, esse país é Portugal; e não o Brasil nem os Estados Unidos. Mesmo sendo patente uma boa dose de deriva política e alguns casos de evidente colapso no tratamento hospitalar (e.g., Manaus, embora a mortalidade em Janeiro fosse muito semelhante à da região de Lisboa e Vale do Tejo), no Brasil não se encontram subidas abruptas de mortalidade causada pela pandemia. As variações são suaves, e os valores mais elevados (entre os 50 e 60 óbitos padronizados) fazem-se em planalto. Não foi como em Portugal que, por exemplo, começou Janeiro com uma média de 70 óbitos e acabou atingindo 291 óbitos no último dia desse mês. Se isto não é descontrolo, digam, então, o que é.
Mas, pronto, vamos então admitir que, nos últimos meses, o vírus atacou mais forte no Hemisfério Norte, como se viu nos Estados Unidos entre Novembro e finais de Janeiro. Sim, é verdade. Porém, vejamos: no primeiro dia do penúltimo último mês de 2020, a média móvel (padronizada) nos Estados Unidos estava nos 30 óbitos, e chegou a ultrapassar ligeiramente os 100 óbitos durante grande parte de Janeiro (em planalto). Portanto, triplicou. Portugal, por sua vez, tendo no dia 1 de Novembro uma mortalidade muito semelhante à das Terras do Tio Sam, “só” teve uma subida de cerca de 30 óbitos diários para quase 300. Quase decuplicou, portanto.
E isto sucedeu em Portugal em completa ausência de análise crítica da imprensa, que lança loas ao activo, responsável, assertivo, prudente e solidário primeiro-ministro português, António Costa.
Ainda bem que o temos, porque, de contrário, se tivéssemos escroques da laia de um Trump ou de um Bolsonaro a gerir a pandemia, Portugal estaria agora como os Estados Unidos ou o Brasil – ou seja, melhor do que estamos.
P.S. Leio, pelas 13h00 do dia 28 de Fevereiro, uma notícia da Lusa que relata ter o presidente da Associação Portuguesa de Administradores Hospitalares, Alexandre Lourenço, considerado que a resposta à pandemia em Portugal foi “francamente má” e que é preciso “repensar todo o modelo de organização do sistema de saúde”. Aleluia!
Fonte: Our World in Data; Instituto Nacional de Estatística; United States Census Bureau; Instituto Brasileiros de Geografia e Estatística.