
Em Janeiro, os dados oficiais apontam para 270 mortes por covid-19. Na última semana de Fevereiro foram apenas 67. Qual foi a razão para esta descida? Apenas diminuição do número de internados? Não parece. Um dia depois do presidente da Associação Portuguesa dos Administradores Hospitalares admitir que a resposta à pandemia foi “francamente má”, o FAROL XXI mostra como o Serviço Nacional de Saúde falhou em Janeiro, deixando que em certos dias morressem mais de 40 pessoas por 1.000 internados. E isso é prova de falhanço? Sim, se considerarmos que na última semana de Fevereiro, essa taxa se reduziu para apenas 18 óbitos por 1.000 internados. A recuperação da eficácia do SNS em Fevereiro é a prova do seu colapso em Janeiro.
Pedro Almeida Vieira

O presidente da Associação Portuguesa dos Administradores Hospitalares foi taxativo em recentes declarações à Lusa: a resposta à pandemia em Portugal foi “francamente má”, defendendo que “grande parte da situação” vivida em Janeiro deste ano podia ter sido evitada, e acrescentando ainda que se perdeu “muitos meses em questões menores quando a questão maior era atender às necessidades de resposta à pandemia e especialmente da resposta a doentes não covid-19”.
Estas declarações de um importante responsável pela área da Saúde – mesmo se sem funções políticas neste sector – reforçam a ideia de que a hecatombe em Janeiro foi sobretudo resultado do colapso do Serviço Nacional de Saúde (SNS), e não tanto do aumento do número de casos positivos nem do número de internados pela covid-19. Recorde-se que no primeiro mês de 2021, a doença causada pelo SARS-CoV-2 terá sido responsável pela morte de 5.785 pessoas, contabilizando-se 19.653 mortes por todas as causas – um recorde desde 1960, ano a partir do qual se conhecem registos mensais. Neste período, também marcado por uma vaga de frio, ocorreram 23 dias com mais de 600 óbitos por todas as causas, dos quais oito dias superando a fasquia dos 700. Antes do ano corrente, o anterior recorde pertencia ao dia 2 de Janeiro de 2017, com 578 óbitos. Agora, esse dia é apenas o 27º dia mais mortífero desde 2009, e o máximo está, neste momento, nos 748 óbitos verificados em 20 de Janeiro último.
Curiosamente, o mês de Fevereiro, e sobretudo a sua última semana, confirmou que o primeiro mês de 2021 foi de completo colapso e de desnorte do SNS. Com efeito, Fevereiro acabou com um registo de 3.594 mortes atribuídas à covid-19, uma descida de quase 40% face ao mês anterior. No entanto, a descida nas últimas duas semanas de Fevereiro foi muito mais significativa face às primeiras duas semanas deste mês: entre os dias 1 e 14 contabilizou-se uma média diária de quase 190 óbitos – na segunda quinzena de Janeiro atingira-se os 270 óbitos por dia –, enquanto entre os dias 15 e 28 se registaram apenas 67 óbitos por dia.
Para esta evolução favorável contou, em parte, a uma redução significativa dos internamentos-covid, sobretudo na última quinzena de Fevereiro. Com efeito, nos primeiros dias do ano, os internamentos – que estavam próximos dos três mil – começaram a aumentar. No dia 10 de Janeiro já tinham ultrapassado os 4.000 e uma semana depois superavam os 5.000. Entre 23 de Janeiro e 8 de Fevereiro estiveram sempre acima dos 6.000 internamentos, com uma ocupação dos cuidados intensivos entre as 700 e 900 camas.
Face a aumento do número de internamentos seria sempre expectável um crescimento no número de mortes-covid. Porém, aquilo que sucedeu, na verdade, foi um incremento muitíssimo maior do que esse expectável. De facto, durante o mês de Dezembro do ano passado, e também de Novembro, a taxa diária de mortalidade dos internamentos – isto é, o número de óbitos em cada dia em relação aos internados do dia anterior – situou-se nos 2,5% (ou 25‰), o que significa 25 óbitos por 1.000 internados em cada dia). A amplitude nesse mês não foi muito significativa: mínimo de 19‰ (dia 20) e máximo de 32‰ (dia 12).

No primeiro mês de 2021, claramente o SNS desmoronou-se. Em Janeiro, este indicador sofreu um contínuo agravamento. A partir do dia 10, a taxa diária de mortalidade superou sempre os 30‰, ultrapassando os 40‰ entre os dias 18 e 31. O máximo foi registado no dia 22 de Janeiro (47‰), quando então estavam internadas 5.922 pessoas. Em 27 e 30 de Janeiro, dias com maior mortalidade por covid-19 (303), esta taxa foi de 46%. Ou seja, quase o dobro da registada ao longo de Dezembro.
A partir de Fevereiro, felizmente, esta taxa de mortalidade – um indicador precioso para aquilatar a eficácia do SNS – diminuiu consideravelmente, o que revela que houve menos mortes e mais recuperados com alta. A partir de 5 de Fevereiro baixou definitivamente a fasquia dos 35‰ e no dia 9 estava já abaixo dos 30‰. Na última semana de Fevereiro (entre os dias 22 e 28), esta taxa média situou-se em 18‰, um desempenho mesmo melhor do que o registado em Dezembro.

Esta evidente melhoria do desempenho do SNS na segunda quinzena de Fevereiro acaba por ser mais uma prova cabal do colapso de Janeiro. Caso a taxa diária de mortalidade no primeiro mês de 2021 fosse similar à observada na última semana de Fevereiro (18‰) teriam morrido apenas 2.748 pessoas (em vez de 5.785), ou seja, ter-se-iam salvado 3.037 doentes-covid. Se se descontar esse excesso de mortalidade, pelo colapso evidente do SNS, chega-se mesmo à conclusão que não haveria sequer um dia a ultrapassar os 130 óbitos – e, na verdade, chegou-se a ultrapassar os 300. E desde 11 de Fevereiro estar-se-ia já com menos de 100 óbitos por dia, algo que só veio a suceder por sistema uma semana mais tarde.
Calculando-se o desvio absoluto de mortalidade em Portugal (acima da taxa de 18‰), observa-se também que, em grande parte dos dias de Janeiro, o excesso de mortalidade-covid devido ao colapso do SNS representa muito mais de 50% dos óbitos registados. Por exemplo, entre os dias 25 e 31 de Janeiro, o excesso de óbitos – considerando as mortes acima da taxa de 18‰ – foi sempre superior a 150, atingindo o seu auge no dia 27 com 185 mortes a mais. Contas feitas, o a ineficácia no tratamento hospitalar em Janeiro foi responsável por mais de metade das mortes por covid-1 apenas em Janeiro. Significa assim que se a resposta do SNS não fosse “francamente má”, recorrendo de novo às expressões do presidente da Associação Portuguesa dos Administradores Hospitalares, Portugal teria apresentado níveis de mortalidade muito semelhantes aos demais países europeus durante este Inverno. E não estaria agora no sexto lugar dos países (se se excluir o minúsculo San Marino) com pior mortalidade relativa atribuída à covid-19.

Em suma, se o SNS tivesse sido mais bem preparado, não estaríamos agora a chorar mortes desnecessários, nem a perpetuar restrições, incluindo fecho de escolas. Na verdade, as escolas foram fechadas por António Costa porque o mesmo António Costa não investiu, efectivamente, na preparação do SNS para o Inverno. Nunca é demais relembrar que a ministra da Saúde, Marta Temido, prometeu em Outubro passado que haveria “17.700 camas para assistência à pandemia”, mas nunca se viu onde elas estavam porque o SNS colapsou a partir das 3.000. A culpa disto não pode ser atribuída simplesmente aos portugueses, aos infectados, ao Natal, às variantes e às escolas. Nem ao diabo. Aliás, até porque o diabo, diz-se, está “nos pormenores”. E em Janeiro, o que falhou foi o todo. Todo o SNS.

Fonte: DGS