
Os modelos matemáticos pululam agora, em todo o Mundo, em redor da pandemia da covid-19, alimentando o pânico e sustentando restrições e medidas políticas. Mas, afinal, os vírus andam mesmo sob a batuta dos matemáticos e seus modelos? Ou têm antes comportamentos mais banais? A resposta nunca será taxativa, porque há muitas variáveis desconhecidas. Infelizmente, em vez de assumirem isso, alguns matemáticos usam a Ciência como se estivessem a manobrar uma bola de cristal.
Lourenço Bray (Matemática Aplicada à Economia e à Gestão, ISEG)
Pedro Almeida Vieira (Economia/Gestão, ISEG; Engenharia Biofísica, Universidade de Évora)

O senso comum sabe existir, sobretudo em geografias com estações bem definidas, uma forte correlação entre a sazonalidade viral e factores meteorológicos. E os cientistas ainda mais. Poucos meses antes de eclodir a pandemia causada pelo coronavírus SARS-CoV-2, três cientistas da Universidade de Edimburgo publicaram um interessante artigo na Nature sobre a associação entre a meteorologia – sobretudo temperatura e humidade – e a sazonalidade viral, destacando não ser semelhante para todos os vírus. Salientavam também a frequência elevada de infecções do trato respiratório superior – que eventual evolução para o trato inferior, causando pneumonias e bronquites –, chegando aos dois a cinco episódios por ano em adultos, e a sete a 10 episódios nas crianças. Ou seja, como se sabe, as infecções respiratórias são bem frequentes. Uma grande parte destas infecções, sobretudo constipações, são causadas por rinovírus (30-70%), com alta probabilidade de reinfecções por existirem mais de uma centena de tipos. Os coronavírus são responsáveis por entre 7% e 18% das infecções do trato superior, sendo que as restantes são provocadas por vírus da influenza tipo A e B, da parainfluenza, adenovírus, metapneumovírus humano e vírus sincicial respiratório humano.
Relativamente à questão da meteorologia, os referidos cientistas apontavam para três teorias que explicavam porque, em regiões temperadas, as infecções leves do trato respiratório superior aumentavam em frequência no Outono e na Primavera, e permaneciam em níveis muito mais elevados durante o Inverno, a saber: 1) o efeito das condições climáticas na resistência das pessoas à infecção, devido em parte aos baixos níveis de vitamina D, por a redução da exposição solar afectar as capacidades imunitárias de se combater a infecção; 2) o efeito dos factores meteorológicos (e.g., temperatura e humidade) na sobrevivência do vírus e, portanto, das taxas de infecção; 3) o efeito das mudanças comportamentais na transmissão, designadamente o facto de se passar mais tempo dentro de casa durante os períodos invernais, em estreita proximidade com outras pessoas, ou a agregação de crianças suscetíveis nas escolas durante os meses mais frios. Além destas três teorias, o artigo aventava outras hipóteses, entre as quais a diminuição, durante o Inverno, da resposta imunitária em pessoas infectadas por resfriados ou constipações, e a reactivação de vírus dormentes durante os meses mais frios.

Nesse artigo destaca-se sobretudo as diferenças sazonais da actividade viral, através da análise da prevalência dos diferentes vírus no período entre Abril de 2009 e Novembro de 2015. Enquanto, por exemplo, os adenovírus e sobretudo os rinovírus mostraram estar sempre presentes ao longo de todos os meses – embora com picos em Março-Abril (pequeno) e em Outubro-Novembro e Março (mais pequeno), respectivamente –, já os outros vírus apresentavam uma mais evidente sazonalidade. Por exemplo, o vírus da influenza tipo B – geralmente menos letal – apareceu sobretudo em Fevereiro e Março. Também o mês de Março foi, por regra, o de maior prevalência do metapneumovírus humano. Em relação aos vírus da parainfluenza dependeu do tipo: em Abril e Maio surgiram mais os do tipo 3, e o tipo 2 teve dois picos, sendo que o maior foi em Outubro-Novembro e o menor em Julho, enquanto o tipo 1 não mostrou qualquer padrão de sazonalidade.
Por fim, o vírus sincicial respiratório e os vírus da influenza tipo A mostraram uma maior presença nos períodos Novembro-Dezembro e Dezembro-Janeiro, respectivamente. Os vírus da influenza tipo A são, como se sabe, aqueles que, por regra, maiores preocupações provocam, registando já quatro grandes pandemias desde o século XX: 1918 (H1N1, Gripe Espanhola), 1957 (H2N2, Gripe Asiática), 1968 (H3N2, Gripe de Hong Kong) e 1977 (H1N1, Gripe Russa). Esporadicamente, além destas estirpes, foram surgindo outras em situações muito pontuais (todas H7N7), mas, a partir dos anos 90 do século XX intensificou-se o surgimento de gripes aviárias: na Inglaterra em 1996 (H7N7), Hong Kong em 1997 (H5N1), em 1999 (H9N2) e em 2003 (H5N1), na Holanda em 2003 (H7N7), no Canadá em 2004 (H7N3), no Vietname em 2004 (H5N1) e na Tailândia em 2004 (H5N1). Neste último caso, o vírus H5N1 foi considerado bastante perigoso face à sua elevada taxa de letalidade (64%), mas felizmente foram apenas infectadas 80 pessoas. Em 2009 surgiria uma nova epidemia causada pelo H1N1, classificada também como pandemia pela Organização Mundial de Saúde. Apesar de os registos laboratoriais apontarem para apenas 18.631 mortes em todo o Mundo, estimativas apontam para a eventualidade de ter sido 10 vezes pior, mas mesmo assim em valores bastante aceitáveis para um surto gripal.
Para estas fortes variações contam sobretudo as “preferências” dos diferentes vírus quanto à temperatura e à humidade relativa. Por exemplo, os vírus da influenza tipo A preferem temperaturas médias em redor dos 6,7oC e temperaturas de ponto de orvalho de 3,9oC. Os vírus que surgem pela Primavera ou aqueles que surgem num período mais alargado preferem outras condições meteorológicas que dependem, igualmente, da humidade relativa, incluindo a sua variação ao longo do dia.
Em suma, num contexto absolutamente normal, em que não se alterem quaisquer variáveis – como seja o uso de máscaras ou confinamentos –, distintos os vírus seguem padrões sazonais próprios que são explicados pela temperatura, humidade e pelas características intrínsecas de cada vírus. Nas mesmas condições têm assim comportamentos diferentes. Têm picos, mas podem desaparecer repentinamente, e depois regressar. Nisso, pouca ou nenhuma influência têm as actividades ou decisões humanas. Aliás, por exemplo, nunca se verificou uma relação entre o Natal ou a passagem de Ano, períodos de maior convívio antes da pandemia da covid-19, e o aumento de infecções respiratórias.

Embora muitos estudos coloquem a temperatura e a humidade como factores explicativos da actividade viral, convém obviamente colocar a Estatística no seu devido lugar, sobretudo quando surge um novo vírus, como o SARS-CoV-2. Todos os modelos que tentam prever uma evolução de “comportamento” viral em função de variáveis meteorológicas – ou de actividade humana – apresentam uma fragilidade extrema na modelação da realidade quando se introduzem variáveis como “confinar” ou “não confinar”.
Quanto maior for a experiência (e honestidade) com números e Estatística, mais cepticismo se ganha relativamente ao poder mágico dos modelos. Uma coisa é trabalhar séries longas, como as dos vírus que já existem numa realidade estável: aqui, consegue-se isolar o efeito das variações sazonais, mudando-se “só” a temperatura e a humidade, bem como o comportamento das pessoas (e.g., estarem mais tempo em casa, mais perto uns dos outros, etc.). Outra coisa bem diferente é misturar tudo ao mesmo tempo, como, por exemplo, confinar depois de um Janeiro gelado – dos mais frios dos últimos tempos – e fechar as escolas e proibir até os cafés de vender, enfim, café.
Na verdade, só se confina quando há um pico de doentes. E as séries aparentam sempre ter picos e quebras – ou não seriam picos, de todo. Isto só por si demonstra como a variável “confinar” não é independente da própria série que tenta explicar, uma vez que a decisão de “fechar as pessoas” ocorre naturalmente quando se considera – nem sempre com uma referência – haver muitos casos e os media andam aos gritos e as pessoas assustadas. Se se der o caso de os picos da covid-19 estarem relacionados com factores sazonais, como temperatura, humidade, e o próprio SARS-CoV-2 (como todos os vírus antes dele) se propaga assim “naturalmente” quando as condições ambientais lhe são mais favoráveis, então isso significa, também “naturalmente”, que logo que as condições deixarem de ser óptimas a curva inverte e as infecções começam a descer abruptamente. Aliás, ficou bem evidente que o fecho das escolas em Portugal ocorreu em plena histeria mediática, mas numa fase marcadamente descendente da curva.
Em todo o caso, não se queira ser como os influencers sanitários que defendem afincadamente serem os confinamentos a razão milagreira para a inversão das curvas de infecção. Embora seja evidente que, por exemplo, na Europa, exista um ritmo regional de infecções e mortes por covid-19 – por exemplo, a vaga da Primavera de 2020 poupou o Leste, mas já não a vaga de Inverno, e agora apenas a República Checa e a sua vizinha Eslováquia apresentam uma situação relativamente preocupante –, na verdade as escalas variam. Há diferenças e lags (“desfasamentos temporais”). Porém, parece evidente que o facto de o SARS-CoV-2, tal como os outros vírus, obedecer a um qualquer fenómeno síncrono em realidades tão distintas, significará certamente que existe um elemento comum agregador que está sincronizado, embora transcendendo os conhecimentos das “formiguinhas humanas” que, de forma cega, decidem “enfocinhar” máscaras, fecham praias e jardins, encerram escolas e restaurantes e livrarias, e decidem meter uma pessoa assintomática 15 dias em casa. Ou não.

Na verdade, e com honestidade, há muitas outras variáveis impossíveis de modelar, ainda para mais em algo novo. Quando alguém se mete a fazer modelos para medir o efeito dos “confinamentos” entre vários países, o riso devia ser a única reacção. Não é possível modelar com seriedade o efeito de “confinar”, ou medir intensidades de confinamentos com escalas numéricas. Para tal seria preciso, no mínimo, ter em conta as diferenças abissais entre países, o que decidem, como aplicam e que meios têm para aplicar, bem como comportamentos das pessoas e das autoridades, e cruzando depois tudo isto com dados demográficos e sociológicos complexos, como seja as comunidades, os seus grupos e costumes, as condições de habitabilidade das residências, e por aí fora.
Infelizmente, no meio disto tudo, no meio do mau uso de modelo, se há mesmo assim dados objectivos, óbvios, que confirmam a irrelevância de restrições – como o encerramento de escolas – na propagação do vírus, as pessoas preferem não acreditar. Aceitam o encerramento de escolas porque houve “especialistas” na televisão com modelos a avisar que se avistava uma hecatombe. E aceitam, mesmo quando depois o Ministério da Educação revelar que, de entre 16 mil testes rápidos de antigénio feitos em Janeiro a alunos, professores e funcionários, se identificaram apenas 50 casos positivos. Repita-se: 50 casos positivos; uma taxa de incidência de 0,3%. E nem vale a pena, com estes valores, saber quantos deles são assintomáticos, nem vir aqui perorar sobre o Teorema de Bayes, e a elevada probabilidade de, em grupos com prevalências tão baixas, estarmos perante um elevado número de falsos positivos. E note-se que as análises incidiram em concelhos então classificados de risco “extremamente elevado”.
Enfim, basearmo-nos em modelos matemáticos e acreditar pia e acriticamente que o encerramento de escolas – e medidas similares – foi determinante na inversão da curva das infecções estará ao nível de qualquer superstição – como seja, bater três vezes na porta antes de sair de casa para assim se evitar o ataque de um tubarão ao virar a esquina. O ataque do tubarão jamais ocorrerá, mas pela simples razão de estes não viverem na rua, e não por causa do ritual da porta, por mais que algum modelo matemático queira garantir que foi aquele gesto diário a salvar vidas. Em suma, e regressando aos tempos que correm, o melhor mesmo será passar a convidar a astróloga Maya para as próximas reuniões do Infarmed. Pelo menos, poupa-se a Ciência a sair dali envergonhada.

Fontes:
Alexander, D. J. (2006). Avian influenza viruses and human health. Dev Biol 124:77-84. Link: https://pubmed.ncbi.nlm.nih.gov/16447497/
Simonsen, Lone et al. (2013). Global Mortality Estimates for the 2009 Influenza Pandemic from the GLaMOR Project: A Modeling Study. PLoS Med. 10(11): e1001558. Link: https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pmc/articles/PMC3841239/
Price, Rory H. M et al. (2019). Association between viral seasonality and meteorological factors. Nature – Scientific Reports 9: 929 Link: https://www.nature.com/articles/s41598-018-37481-y