Sexta-feira, Setembro 22, 2023
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O ano sem milagres: análise do desastre português numa Europa flagelada

Na Europa, a covid-19 terá já matado cerca de 825 mil pessoas. Esta forma verbal surge aqui assim porque a polémica mantém-se viva: os óbitos foram “com” ou “por”?  Independentemente do exagerado da letalidade do novo coronavírus, a pandemia trouxe um excesso de mortalidade ao Velho Continente, mas variou bastante tanto nos diversos países como nos distintos grupos etários. O FAROL XXI analisou os dados do Eurostat, e mostra aqui que os países com mais fortes restrições contra a covid-19 não conseguiram salvar-se do desastre. Portugal é um exemplo claro. No extremo oposto, a Suécia – com menos restrições e sem confinamentos – não esteve tão mal. 

Pedro Almeida Vieira

O colapso do Serviço Nacional de Saúde e a covid-19 causaram um acréscimo de mais de 21% da mortalidade em Portugal desde a chegada da pandemia à Europa em meados de Fevereiro de 2020 até finais de Janeiro de 2021. De acordo com o Eurostat, que compila dados da mortalidade semanal de 34 países europeus, Portugal apresentou uma subida da mortalidade total (por todas as causas) de 11,5% no ano 2020 em comparação com a média dos cinco anos anteriores, mas a situação agrava-se substancialmente se se incluir as quatro primeiras semanas de 2021 (mês de Janeiro) e se se iniciar a contagem apenas a partir do dia 10 de Fevereiro de 2020 (início da semana 7 desse ano). Nesse caso, assim, o acréscimo de mortalidade quase duplica. Recorde-se que o primeiro óbito atribuído à covid-19 na Europa ocorreu no dia 13 desse mês, e que em Portugal a primeira vítima oficial sucederia apenas em 16 de Março.

A análise dos dados do Eurostat – enviados regularmente pelos institutos nacionais de estatística dos países da União Europeia e de mais oito países europeus (Islândia, Liechtenstein, Noruega, Suíça, Reino Unido, Montenegro, Albânia e Sérvia) – permite, por agora, apenas aferir em 21 países o impacte da pandemia (excesso de mortalidade por covid-19 e não-covid-19) desde o seu início no Velho Continente até ao final de Janeiro de 2021, uma vez que existem atrasos em alguns casos. Aliás, Grécia e Itália ainda não endereçaram os dados das últimas semanas de 2020. Optou-se também por excluir o pequeno principado do Liechtenstein, por ter cerca de 40 mil habitantes.

Fonte: Eurostat – Nota: W07/2020 – semana 7 de 2020; W04/2021 – semana 4 de 2021

Assim, considerando apenas estes 20 países europeus, Portugal apresenta-se como o terceiro pior país a enfrentar os efeitos da pandemia (directos e indirectos), com um excesso na mortalidade por todas as causas na ordem de 21,3%, sendo apenas ultrapassado pela Espanha (+23,8%) e Polónia (+24,6%). No caso do país do Leste da Europa, praticamente protegida da primeira vaga da Primavera, registou um incremento galopante na mortalidade a partir de Outubro, com o seu auge no início de Novembro (semana 45). No caso de Espanha, as semanas 12 a 17 do ano passado – isto é, entre a segunda quinzena de Março e finais de Abril – foram muito mortíferas, atingindo-se um pico de óbitos na semana 14, com quase 21 mil mortes, um excesso de cerca de 10 mil óbitos relativamente ao máximo semanal nos cinco anos anteriores. Em relação a Portugal, apesar do contínuo excesso de mortalidade desde Março do ano passado, atingiram-se níveis de gravidade extrema em Janeiro último. O pico de mortalidade foi alcançado na semana 3 deste ano (18-24 de Janeiro) com 5.014 óbitos, de acordo com o Eurostat. O máximo dos cinco anos anteriores encontrava-se na semana 1 de 2017, durante um surto severo de gripe, com 3.366 óbitos. 

A maioria dos países abrangidos por esta análise apresentam um acréscimo na mortalidade total para a globalidade da população entre 10% e 20%. Neste grupo pontifica a Bélgica – até recentemente considerado o país mais fustigado pela covid-19, tendo sido entretanto ultrapassado pela República Checa –, que surge logo atrás de Portugal, com um excesso de mortalidade de 19,6%. Neste grupo encontra-se também a Suécia, país que adoptou um regime menos politizado de combate à pandemia, nunca incluindo a obrigatoriedade de máscaras faciais, e que tem sido alvo de constantes críticas dos apologistas de restrições e lockdowns. Desde o início da pandemia registou um acréscimo de mortalidade de 11,6% (9,7 pontos percentuais abaixo de Portugal), sendo o sétimo desempenho de entre os 20 países analisados. No extremo mais favorável encontram-se os países que adoptaram, ou foram entretanto adoptando – regimes menos restritivos – estando agora com valores baixos do Índice de Rigor Governamental da Universidade de Oxford –, nomeadamente a Letónia, a Finlândia e mesmo a Dinamarca e a Noruega. Este último país escandinavo registou um acréscimo de mortalidade total de apenas 1%, significando que a pandemia teve efeito virtualmente nulo tanto ao nível das mortes directas por covid-19 quer por doenças não-covid.

Fonte: Eurostat – Nota: W07/2020 – semana 7 de 2020; W04/2021 – semana 4 de 2021

Embora nesta análise ao conjunto da população se possa já retirar algumas conclusões interessantes, acaba por ser no confronto ao nível da mortalidade nos diferentes grupos etários que se tem uma melhor percepção daquilo que, verdadeiramente, sucedeu nos diferentes países. E aqui as notícias não são boas para Portugal. Apesar da comunicação social portuguesa ter ficado escandalizada com os relatos da mortalidade dos lares na Suécia – e da suposta injecção de morfina em idosos –, certo é que Portugal não tem nada para se orgulhar da forma como tratou os seus “velhos” durante a pandemia. Nos maiores de 90 anos – um grupo bastante vulnerável à covid-19 e à suspensão da assistência médica –, Portugal foi também o terceiro pior país (atrás do Luxemburgo, com uma população bastante reduzida, e da Polónia), apresentando um acréscimo de mortalidade durante a pandemia, e até final de Janeiro passado, de 35% – um valor ligeiramente superior à Bélgica e Espanha. Em termos absolutos, no período em análise da pandemia morreram 28.935 maiores de 90 anos, enquanto em média, nos cinco anos anteriores, tinha-se registado, para este grupo etário, uma média de 21.489 pessoas. A mortalidade dos nonagenários e centenários foi, na esmagadora maioria dos países, bastante expressiva: 12 em 20 registaram um acréscimo de 20% ou superior durante a pandemia, o que confirma a gravidade da covid-19 nas idades muito avançadas. No entanto, na Dinamarca (+4%), Chipre (+3%) e Noruega (+1%) merecem um especial destaque, porquanto esse excesso foi bastante diminuto.  

No grupo etário precedente (85-89 anos), mais uma vez Portugal se saiu muito mal – e, afinal, a Suécia, mesmo admitindo falhas, não esteve tão mal. No confronto com todos os restantes 19 países, apenas a Espanha teve um acréscimo ligeiramente superior ao nosso país (26% contra 25%). Nota-se também que a generalidade dos países conseguiu, em comparação com os maiores de 90 anos, atenuar um pouco mais o impacte da pandemia neste grupo etário: apenas cinco países (Espanha, Portugal, Suíça, Polónia e Bélgica) tiveram um acréscimo de mortalidade superior a 20%. No extremo oposto, seis países registaram variações inferiores a 10%. Na Finlândia e na Noruega registou-se mesmo uma redução da mortalidade nas pessoas com idades compreendidas entre os 85 e 89 anos.

Fonte: Eurostat – Nota: W07/2020 – semana 7 de 2020; W04/2021 – semana 4 de 2021

Se se considerar que os utentes dos lares integram sobretudo a população com mais de 85 anos pode-se também inferir que a pandemia foi particularmente grave – por via directa e indirecta – na Polónia (que registou, neste grupo etário um excesso de óbitos de 35%), Espanha e Portugal (ambos, com mais 30%), Bélgica (+28%), Suíça (+25%), Luxemburgo (+24%), Croácia (+23%) e Lituânia (+20%). Curiosamente, a tão acusada Suécia – país onde as autoridades de saúde admitiram falhas nos seus lares – registou um acréscimo de mortalidade nos maiores de 85 anos na ordem dos 12%, estando apenas pior do que a Dinamarca e a Finlândia (ambas, com um acréscimo de 6%), Chipre (+5%) e Noruega, que conseguiu reduzir a mortalidade neste grupo etário.

Fonte: Eurostat – Nota: W07/2020 – semana 7 de 2020; W04/2021 – semana 4 de 2021

Nos grupos etários dos 75-79 anos e 80-84 anos, o padrão de mortalidade foi algo distinto dos subsequentes. No caso do grupo dos 75-79 anos, porque embora mais uma vez a Espanha se destaque pela negativa (incremento de 31%), os países escandinavos apresentam situações menos favoráveis, estando mesmo a Suécia e a Dinamarca piores do que Portugal, que registou um excesso de óbitos de 17%. No extremo oposto surge a Letónia e a Alemanha que conseguiram que a pandemia passasse sem impacte neste grupo etário. Note-se, porém, que as pessoas desta idade têm ainda uma probabilidade de morte muito mais baixa do que as dos grupos subsequentes, uma vez que se encontram ainda abaixo da esperança média de vida. No grupo dos 80-84 anos destacam-se as situações estranhamente desfavorável da Áustria (acréscimo de 30%) e da Holanda (+21%), estando Portugal integrado num conjunto de 11 países, que também inclui a Suécia, com um excesso de mortalidade entre 10% e 20%. 

Fonte: Eurostat – Nota: W07/2020 – semana 7 de 2020; W04/2021 – semana 4 de 2021

Apesar dos dados do Eurostat permitirem uma análise detalhada dos grupos etários em cada cinco anos, decidiu-se, por fim, apenas agregar os menores de 75 anos, assumindo que assim se pode avaliar, de uma forma mais expedita, o eventual impacte das outras doenças não-covid na população menos vulnerável ao SARS-CoV-2. 

Fonte: Eurostat – Nota: W07/2020 – semana 7 de 2020; W04/2021 – semana 4 de 2021

Também aqui a Península Ibérica não sai bem na fotografia. Embora os dois piores países sejam do Leste – Polónia (acréscimo de 22%, o que denota que a chegada tardia da covid-19 colapsou também o seu sistema de saúde) e Bulgária (21%) –, a Espanha (+18%) e Portugal (+14%) surgem logo nas posições seguintes. Neste grande grupo etário, o impacte directo e indirecto da pandemia foi bastante marginal ou mesmo nulo na Alemanha, Suíça, Finlândia, Chipre, Suécia, Letónia, Noruega e Dinamarca. Na generalidade dos países, a mortalidade no grupo das crianças e adolescentes até se reduziu durante a pandemia. Mesmo em Portugal. Mas isso serve de fraco consolo num país que seguiu uma estratégia de apostar tudo apenas no combate à covid-19, suspendendo a assistência médica convencional, e mostrando-se activo politicamente apenas por via de sucessivas restrições – algumas absurdas – e lockdowns, com estados de emergência a tornarem-se regra em vez de excepção. Como se tem visto, o resultado em termos de Saúde Pública é um desastre humanitário. Nem sequer se conseguiu proteger os idosos – aqueles que, em princípio, deveriam estar protegidos por via de tantas restrições. Aliás, foram “chutados” para debaixo do tapete, tanto assim que, passado quase um ano desde o início da pandemia, não há um só relatório oficial que revele aquilo que se passou nos lares. 

Fonte: Eurostat e Our World in Data

Na verdade, as restrições parecem ter sido poucos eficazes ou mesmo contraproducentes em alguns dos países, sobretudo quando, como em Portugal, se suspenderam consultas, exames e cirurgias consideradas não prioritárias. Embora as medidas de controlo das infecções em cada país tenham, por vezes, sido alteradas ao longo da pandemia, Portugal é neste momento o país, neste lote de 20, com o maior Índice de Rigor Governamental, calculado pela Universidade de Oxford com base em mais de uma dezena de indicadores. Porém, isso não evitou não só uma elevada mortalidade relativa atribuída à covid-19 como também um elevado excesso de mortalidade total, ficando apenas atrás da Polónia e Espanha. No extremo oposto, países como a Finlândia e a Letónia, e mesmo a Dinamarca e a Noruega, alcançaram um moderado agravamento da mortalidade total ao longo do último ano, mas sem demasiadas restrições nas respectivas estratégia de combate ao SARS-CoV-2. 

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