Quinta-feira, Dezembro 5, 2024
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Camas ocupadas em cuidados intensivos com números suspeitos

Em Fevereiro, vários peritos recomendaram que o desconfinamento dependesse de uma descida da ocupação de camas em unidade de cuidados intensivos (UCI). Porém, apesar da forte diminuição dos casos positivos e dos óbitos nas últimas três semanas, as camas de UCI com doentes-covid continuam num patamar anormalmente elevado face à abrupta descida nos internamentos totais. Numa altura em que surgem critério ad-hoc para o desconfinamento, este caso põe o dedo na ferida: devemos acreditar piamente em indicadores facilmente manipuláveis, porque os dados discriminados não são de acesso público?

Pedro Almeida Vieira

A variação da ocupação de camas de cuidados intensivos (UCI) por doentes-covid – um dos factores fundamentais, recomendados por peritos, para o desconfinamento – tem registado uma estranha evolução desde meados de Fevereiro. Tendo em conta o histórico da gestão hospitalar durante a pandemia, seria expectável que, para o actual número de internados por covid-19 em 7 de Março (1.403), houvesse agora apenas cerca de 215 doentes em UCI, se considerada a média do rácio UCI-internados totais – ou seja, a percentagem de doentes-UCI no universo dos internados-covid – entre Outubro e Dezembro de 2021. Portanto, já bastante abaixo do limiar das 245 camas-UCI sugerido em Fevereiro por João Gouveia, médico intensivista e presidente da Sociedade Portuguesa de Cuidados Intensivos. Recorde-se que esse número de camas de UCI para doentes-covid seria, segundo vários peritos que aconselham o Governo, o limite para garantir uma boa capacidade de resposta do Serviço Nacional de Saúde (SNS), sendo que abaixo desse limiar não se justificaria assim a manutenção das restrições. Contudo, a Direcção-Geral da Saúde continuava a apontar um número muito elevado de doentes-covid em UCI: 342 doentes no dia 7 de Março, um número cerca de 40% acima daquela desejável fasquia. 

Para compreender a estranheza do ainda tão elevado número de camas-UCI supostamente ocupadas por doentes-covid – informação que apenas é revelada pela DGS sem qualquer possibilidade de aferição pública – deve confrontar-se a evolução das últimas semanas com o histórico desde Outubro de 2020. Nos últimos três meses do ano passado, independentemente das variações do número total de internados – que atingiu um mínimo de 668 e um máximo de 3.367 –, a percentagem daqueles que se encontravam em UCI manteve-se relativamente estável, entre os 13% e os 17%. O valor máximo atingiu-se na véspera de Natal (18%), e iniciou então uma forte descida ao longo do mês de Janeiro, até um mínimo de 12%. Essa queda abrupta no primeiro mês de 2021 foi, saliente-se, somente relativa – ou seja, em relação ao total de internados –, porque, na verdade, em termos absolutos, a ocupação das UCI aumentou bastante, tendo mesmo ultrapassado as 900 camas no início de Fevereiro. Essa anormal descida relativa tem uma explicação simples e lógica: o forte crescimento dos doentes internados – ultrapassando mesmo os seis mil durante vários dias – deveu-se sobretudo a um extraordinário afluxo de idosos com covid-19, com idades superiores a 80 anos. A esmagadora maioria das pessoas deste grupo, devido às suas condições fisiológicas e comorbilidades, não é elegível para os cuidados intensivos (e.g., ventilação mecânica com coma induzido), que lhes podem fazer mais mal do que bem.

Com a elevada letalidade na segunda quinzena de Janeiro e primeira de Fevereiro, bem como com a recuperação dos níveis de normalidade do SNS – a taxa diária de mortalidade dos internados chegou a atingir os 4,5% em Janeiro, sendo agora, em Março, de apenas 1,8% –, os internamentos caíram a pique, mas paradoxalmente a relação UCI/internamentos não parou de aumentar. No dia 18 de Fevereiro, esse rácio ultrapassava o valor máximo até então registado desde Outubro do ano passado. E não parou por aí. No dia 7 de Março estava nos 24,4%, com um pico observado dois dias antes (25,6%). Ou seja, actualmente, por cada 100 internados-covid, 25 estão em UCI, quando no auge da pandemia, em finais de Janeiro, por cada 100 internados-covid encontravam-se apenas 12 em UCI.

Uma das explicações para este fenómeno poderá ser a opção clínica de, perante uma maior folga nas UCI, colocar alguns doentes num nível de maior acompanhamento contínuo, ademais sabendo-se que os cuidados intensivos têm três níveis, sendo que o mais baixo é aquele que, geralmente, se denomina de cuidados intermédios. Porém, face à ausência de um controlo independente dos números de internamentos, a suspeita de uma gestão política dos números é perfeitamente plausível, sobretudo face ao rácio UCI/internados. Tanto mais porque se mostra cada vez mais evidente um “malabarismo” dos peritos em redor dos critérios para iniciar o desconfinamento. Por exemplo, em 9 de Fevereiro, o investigador Baltazar Nunes, um dos especialistas com maior influência na definição das políticas de restrição, defendeu a necessidade de manter as “medidas de confinamento por um período de dois meses para trazer o número de camas ocupadas em cuidados intensivos abaixo das 200 e a incidência acumulada a 14 dias abaixo dos 60 casos por 100 mil habitantes”. 

Menos de um mês depois, nesta segunda-feira, e face a mais um falhanço sobre a evolução da pandemia, Baltazar Nunes já veio agora dizer que o objectivo passa afinal – citando-se o Expresso, que recolheu as suas opiniões na reunião do Infarmed – por “uma incidência a 14 dias inferior a 60 casos por 100 mil habitantes, um índice de transmissibilidade (Rt) abaixo de 1, uma taxa de positividade nos testes menor do que 4% e um atraso na notificação em menos de 10% dos casos confirmados, o isolamento precoce e rastreio de contactos em 24 horas de pelo menos 90% dos casos, uma taxa de ocupação em cuidados intensivos até 85% para a capacidade após março de 2020, e a vigilância e controlo das variantes.” Como praticamente todos estes números e indicadores são controlados pelo Governo, e não são disponibilizados publicamente para aferição independente, o desconfinamento ou reconfinamento dependerá sempre da exclusiva vontade de António Costa e Marcelo Rebelo de Sousa. Até porque eles sempre encontrarão peritos disponíveis para recriar novos indicadores e novos critérios ao sabor das circunstâncias políticas.

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