
A estratégia do SNS em 2020 seguiu o lema “adiar, adiar, adiar”. O FAROL XXI mostra como evoluíram, por unidade de saúde, as consultas de especialidade ao longo de 2020 e no primeiro mês de 2021, em comparação com os períodos homólogos. Por dia, houve em média, menos 5.124 consultas essenciais para salvar vidas. Em Janeiro deste ano ainda piorou. E mais más notícias: quem sentiu os primeiros sintomas de uma doença, e necessitava de uma primeira consulta de especialidade, teve menor probabilidade de conseguir a desejada visita ao médico. Eis o retrato de um país a ver definhar um serviço nacional de saúde, sem dizer um ai.
Pedro Almeida Vieira

A estratégia decidida pelo Governo na Primavera do ano passado de suspender a actividade normal do Serviço Nacional de Saúde (SNS) levou a um decréscimo de quase 1,3 milhões de consultas de especialidades nas unidades de saúde portuguesas em comparação com 2019. Considerando 253 dias úteis em 2020 (excluindo sábados, domingos e feriados nos dias úteis), em média registaram-se menos 5.124 consultas. Em termos relativos, as primeiras consultas de especialidade ainda sofreram uma maior queda: menos 16%, valor que confronta com a descida de 8% nas consultas subsequentes, ou seja, de doentes que estavam já a ser seguidos.
No mês de Janeiro deste ano, período de verdadeiro colapso do SNS – com a mortalidade total a atingir níveis recorde –, o abrandamento das consultas de especialidade ainda foi mais intenso. Nos 31 primeiros dias de 2021, em comparação com o período homólogo de 2020, houve uma redução muito maior: em média foram realizadas menos 9.749 consultas de especialidade por dia. Ignora-se quais os procedimentos em concreto para a gestão destes adiamentos – seja, se o SNS foi procedendo a reajustes das datas ou se apenas recolocou as consultas adiadas no fim da lista.

Estes dados, que constam na Plataforma da Transparência do SNS, permitem também aferir as significativas diferenças entre as diversas unidades de saúde quer ao longo de 2020 quer também em Janeiro de 2021 (face ao período homólogo do ano anterior). Em termos absolutos, os centros hospitalares (CH) de maiores dimensões foram aqueles que contabilizaram em 2020 uma descida mais significativa nas consultas de especialidade, estando à cabeça o CH de Coimbra (-147.429 consultas, ou seja, menos 583 por dia), o CH de Lisboa Norte (-103.451 consultas, o que representa menos 409 por dia) e o CH de Lisboa Central (-63.146 consultas, isto é, menos 250 por dia). Os três centros hospitalares de Lisboa deram menos 205.747 consultas de especialidade em 2020. Nas 10 unidades com maior redução em consultas constam sete do Grande Porto e da Grande Lisboa, sendo as restantes, além do CH de Coimbra, o Hospital Espírito Santo (Évora) e o CH Tondela-Viseu.
Por outro lado, analisando o desempenho das 49 unidades do SNS constantes no Portal da Transparência verifica-se que metade registaram uma quebra nas consultas de especialidade superior a 12% em 2020, sendo que as primeiras consultas (isto é, destinadas para um primeiro diagnóstico sobre uma eventual doença grave) desceram 17%. Destacam-se apenas quatro unidades de saúde que não foram afectadas pela decisão governamental de suspender parcialmente a actividade não-covid, contabilizando mesmo mais consultas em 2020 do que em 2019: CH de Leiria (+6%), IPO de Coimbra (+3%), CH Psiquiátrico de Lisboa (+2%) e Hospital de Magalhães Lemos (+1%).

Contudo, saliente-se que apesar dos hospitais psiquiátricos de referência de Lisboa e Porto até terem registado um aumento das consultas, estas foram sobretudo devidas ao incremento nas sessões de acompanhamento suplementar, uma vez que as primeiras consultas apresentaram uma redução, por vezes muito forte. Por exemplo, no portuense Hospital de Magalhães de Lemos, as primeiras consultas desceram de 3.564 em 2019 para apenas 2.433 em 2020. Ou seja, quem estava a necessitar de cuidados psiquiátricos ou mentais em 2019, terá tido até melhorias no acompanhamento, mas quem passou a necessitar de consultar um psiquiatra ou psicólogo do SNS em 2020 teve de ir para uma lista de espera sucessivamente adiada.
No caso da actividades dos IPO, é certo que foram das unidades de saúde com menor quebra – ou mesmo ligeira subida –, mas no que diz respeito a primeiras consultas, imprescindíveis para despistar diagnósticos de cancro, todos os centros do Porto, Coimbra e Lisboa apresentaram reduções. No caso do IPO do Lisboa houve em 2020 menos 9.632 primeiras consultas (-18% em relação ao ano anterior), no IPO do Porto menos 3.930 (-5%) e no IPO de Coimbra menos 2.017 (-9%). Ou seja, também aqui, a probabilidade de um doente oncológico em 2019 ter sio bem acompanhado no ano de 2020 manteve-se em bons níveis, porque as consultas suplementares até aumentaram; mas os suspeitos de doença oncológica ao longo de 2020 terá visto, em muitas situações, adiada a desejada primeira consulta.

Em Janeiro último, marcado pelo colapso do SNS, o nível de adiamento de consultas de especialidade ainda aumentou mais. Face a Janeiro de 2020 – ou seja, pouco antes do início da pandemia –, os primeiros 31 dias de 2021 registaram menos 194.983 consultas de especialidade, das quais 73.448 primeiras consultas e 121.535 consultas suplementares. Metade das unidades de saúde registaram quedas superiores a 19%, chegando ou ultrapassando os 30% no Hospital Espírito Santo de Évora (-38%), na ULS da Guarda, na ULS do Norte Alentejano e no Hospital de Loures (-34%, em cada um), CH de Setúbal (-33%) e CH Tondela-Viseu (-30%).
Em termos absolutos, as maiores quedas observaram-se nos CH de Lisboa Norte, CH de Coimbra e CH de Lisboa Central, cada um com redução superior a 10 mil consultas em comparação com Janeiro de 2020. Por exemplo, no CH de Lisboa Norte, que inclui o Hospital de Santa Maria, em Janeiro último realizaram-se menos 864 consultas de especialidade por dia. No extremo oposto, o Hospital de Cascais foi o único que contabilizou em Janeiro de 2021 mais consultas (693) do quem em período homólogo de 2020. Porém, as primeiras consultas tiveram uma redução.

Em suma, 2020 e também o primeiro mês de 2021 foi má altura para se ficar doente. Por causa da covid-19, ouvia-se ensurdecedoramente o lema “testar, testar, testar”, enquanto o SNS optou, por indicações governamentais, por aplicar o lema “adiar, adiar, adiar”, mesmo em sectores onde não parecia haver necessidade de transferir médicos e outros profissionais de saúde para o combate à covid-19. A estratégia, como se sabe, deu mau resultado: Portugal está no top-10 dos países mais afectados pelo SARS-CoV-2 e com um excesso de mortalidade superior a 20% entre Fevereiro de 2020 e Janeiro de 2021 (face à média dos últimos cinco anos). E os portugueses pagarão, ainda mais futuro, com maior sofrimento. E os cemitérios, esses, aumentarão em consequência de uma estratégia que nunca olhou para a pandemia como sendo mais um problema de saúde pública, mas sim como se fosse o exclusivo problema. Erro crasso, para nossa desgraça.
Fonte: Plataforma da Transparência do Serviço Nacional de Saúde (SNS)