Tiago Franco | Engenheiro de Software (Volvo Cars, Suécia)
O meu problema maior com esta pandemia é a prisão mental e a irritação que me vai provocando. Passou um ano. Sabemos hoje um pouco mais do que sabíamos em Março de 2020. Temos dados para analisar e realidades para perceber.
De cada vez que ouço alguém, em horário nobre, iniciar uma intervenção por “segundo as nossas previsões”, ou “pelos nossos cálculos”, juro que me sai um foda-se. Baixinho para ninguém ouvir, mas sai.
Quando ouço falar em planos de desconfinamento suaves, com calma, pela certa, numa altura em que já se fala na quarta vaga, tenho que despejar mais um bocadinho de Reserva alentejana para aguentar o relato até ao fim.
Diariamente acompanho a evolução em Portugal e, com alguma atenção, o que acontece nos países que definem a fronteira entre a Suécia e a Península Ibérica. Tento de todas as formas e feitios sair daqui e conseguir chegar aí, mas o tempo passa, e as complicações são mais do que muitas. E sem grande sentido.
A TAP deixou de voar para a Escandinávia, e todos os países com ligação aérea a Portugal exigem testes. Alguns até mais do que de um tipo. De repente, para uma família de quatro, chegar a casa é um pesadelo logístico e um custo equivalente a uma semana na República Dominicana. E porquê? Ninguém sabe bem.
Para quem não percebe por que razão a TAP é importante na ligação dos emigrantes a Portugal, fica aqui um exemplo. Neste caso em concreto, é a diferença entre ir ou ficar.
Metade dos lisboetas passaram a adorar corridas junto ao rio. A outra metade tornou-se adepta dos passeios de bicicleta, e vai comprar pão a um supermercado que fica no Guincho. Quem tinha um canário arranjou um cão. Quem ia ao lixo de três em três dias passou a ir de três em três horas. Ninguém está em casa. Mas falam-nos em desconfinamento suave e para ser feito em meses, com calma, para não voltarmos a confinar a minoria que acha que o mundo ficou, de facto, em casa.
Entretanto dizem-nos que lá para Maio já nos podemos sentar numa esplanada. Qual? Sobrou alguma? Os bancos de jardim estão interditos, os parques, as praias. Tudo o que é espaço ao ar livre, e onde o distanciamento seria possível, está encerrado. É preciso meter duas ou três gerações num T2, bem juntinhos, e esperar que um deles não venha com brinde nos regressos do Pingo Doce.
Olho para aquele gráfico do Financial Times, com o “grau de confinamento” em cada país, comparo-o com os casos/mortes no último mês e pergunto-me se andará tudo doido. Itália fechada e com casos galopantes. Portugal com números residuais e crianças fechadas em casa. Suécia com a terceira vaga a bater, sem confinamento obrigatório em casa e resultados parecidos com tantos outros. Mais laranja ou vermelho, mais falências ou menos, mais escolas ou creches, e no fim, um ano depois, vemos comportamentos semelhantes na progressão do vírus. Mas acreditamos piamente que, aquelas cinco pessoas que ficaram em casa, salvaram outro idoso na freguesia do lado.
Ou então aceitamos como verdade absoluta que somos diferentes. Não percebemos sozinhos que morrer não é bom, e, no caso de não querermos saber, tem que um polícia nos multar por não nos preocuparmos com a nossa saúde e com a dos que nos são próximos. E quando nos tentamos meter naquele lugar especial dos latinos que não cumprem, lá aparecem povos mais a norte que se baldam ou povos mais a sul que cumprem. Não há métrica, não há lógica do bandalho vs. o cumpridor. E mesmo assim, mesmo com os gritos que só com repressão é que cumprimos, somos inundados em cada noticiário com denúncias de “passeios higiénicos” da população mal aparece um raio de sol. Para de seguida gritarmos, novamente, que só confinando vamos lá.
Por estes dias tenho-me lembrado dos tempos da troika e das vozes nacionais, orgulhosas, que repetiam a plenos pulmões que só com alemães e franceses a vigiarem as contas é que era possível cumprir fosse o que fosse. E agora é igual. Dizemos, de peito feito, que tudo é desculpa para não cumprir o distanciamento. Desde o transporte para a escola, à conversa no café ou a ida ao supermercado. Mas são sempre os outros. Aliás, devemos ser os únicos onde alguém não respeita o distanciamento sozinho. Do outro lado não está ninguém. Mas faz sentido, se pensarmos bem, faz sentido. Paulo Portas também esteve envolvido num caso de corrupção com os submarinos (ou seriam os Pandur?), mas a corrupção só ficou provada do lado alemão. Em Portugal não aconteceu nada.
Johan Carlson, o director da DGS sueca, dizia que arriscávamos a perda de uma geração inteira por causa das escolas fechadas e de termos crianças em casa durante tanto tempo. Segundo ele, o prolongar da situação poderia resultar em agravamento da saúde mental, abusos, conflitos familiares e debilidades físicas. E acrescentava que era por causa disso que, desde o início, tentaram salvaguardar as crianças no meio deste caos instalado, salvaguardando as distâncias para os mais idosos (sobretudo depois da Primavera de 2020). Claro que esta notícia não teve eco em Portugal, afinal, não fazia referência a mortes de idosos em barda.
Não me levem a mal. A sério que entendo a gravidade da situação, percebo que aconteceram mortes evitáveis (umas por ineficácia das autoridades de saúde, outras por irresponsabilidade nossa), e obviamente compreendo que temos que viver com limitações, restrições, distância física até a vacina, imunidade, o que for, nos devolver aquilo a que chamávamos vida normal. Mas não consigo entender, por mais que tente, a lógica na manutenção de países fechados e de economias artificialmente em funcionamento, com base em endividamento ou pura e simplesmente com um aumento da pobreza em grandes fatias da população. Já para não falar do cansaço mental e da saturação que tudo isto transporta.
Há um ano que tenho restrições à mobilidade. Primeiro era a Suécia (onde vivo) numa lista vermelha. Depois foi Portugal (de onde vem o meu passaporte). Entretanto, foram os testes que passaram a duplos (para os holandeses, por exemplo), e que tornaram as deslocações um quebra-cabeças ao custo de pequenas fortunas. A TAP que ficou no chão, e os franceses que nem de carro deixam atravessar o país sem o malfadado teste das 72 horas. De momento, se quiser arejar, posso ir ao quintal, ou apanhar um avião para a Turquia.
Não me apetece trabalhar, não me apetece falar com ninguém, não tenho paciência para mais nada. Estou farto. Farto de tudo. Mas assumo vergonha por esta condição.
Não consigo imaginar o que sente alguém que, para além do desgaste mental, ficou sem conseguir alimentar os filhos ou sem saber verdadeiramente que dia será o de amanhã.
E quando procuro uma lógica, um sentido nisto tudo ou até uma motivação para aguentar esta insanidade que vamos vivendo, lamento, mas não encontro.
Quando amanhã António Costa tiver revelado o plano de desconfinamento, espero ter três ou quatro copos de avanço para conseguir ouvir. E, quem sabe, acreditar.