Tiago Franco | Engenheiro de Software (Volvo Cars, Suécia)
Conto-vos hoje a história de um amigo, anónimo, e sem qualquer detalhe da entidade patronal por causa dos impedimentos legais.
Foi colocado a trabalhar em casa antes da Páscoa de 2020. O meu amigo trabalha num construtor automóvel que tem como público-alvo a classe média-alta para cima. Por essa altura, em Abril de 2020, os mercados fecharam e as vendas pararam. A forma da empresa combater a perda de receitas foi, para início de conversa, despedir 1.300 pessoas. Aos sortudos que por lá ficaram, cortaram uma percentagem dos salários enquanto recebiam apoio do Estado.
Um dos critérios para despedimento era o conhecimento (ou falta dele) de ferramentas de desenvolvimento no mundo digital. Ou seja, aquelas pessoas cujo trabalho se adaptava melhor ao mundo digital e remoto tiveram maiores probabilidades de não perderem o emprego.
O meu amigo safou-se apenas com um corte de 5%. Foi bom.
Durante um ano transformou a casa em escritório, e pagou, obviamente, as despesas daí resultantes: água, luz, internet e telefone. No terceiro piso da casa montou um laboratório que consumia a corrente eléctrica de cinco máquinas de lavar.
Durante aquele ano, a família teve que conviver, dentro de casa, com os barulhos repetitivos do laboratório durante horas a fio. O meu amigo trabalha com áudio.
Por causa da pandemia e fecho das escolas, o segundo piso da casa ficou transformado em sala de aula.
No piso térreo manteve-se, apesar de tudo, alguma normalidade.
Ainda assim, disse-lhe que tinha alguma sorte. Num T2 teria ficado maluco ao fim de um mês.
Entretanto, o mercado abriu. E aqui mercado quer dizer China e Estados Unidos. As vendas voltaram a disparar, e a companhia chegou ao primeiro trimestre de 2021 com os melhores resultados de sempre.
O meu amigo continuou em casa. Ele e mais alguns milhares que deixaram de usar a água da cantina, a luz do escritório e o papel higiénico do wc partilhado. E como se comprou papel higiénico nesta pandemia, senhores…
O departamento de finanças começou a fazer contas e percebeu que a poupança fora gigante. O trabalho apareceu na mesma e o custo por carro diminuiu, ou seja, o lucro disparou.
Em simultâneo, a pandemia fez com que as compras de bens essenciais pela internet aumentassem exponencialmente, e por isso os rapazes do marketing também começaram a fazer rolar os dados. Rapidamente chegaram à conclusão que, dentro de poucos anos, a empresa acabará com todos os stands de vendas e passará, exclusivamente, a vender online. Mais uns milhares irão para o desemprego, mas compraremos um carro, de luxo, como quem encomenda uma pizza bacana com extra queijo [há 20 anos que é o meu guilty pleasure].
Numa sociedade cada vez mais fechada e menos aberta ao diálogo, a indústria transforma-se e procura o lucro que existe no El Dorado do trabalho online. Com a vacinação em crescente, e o regresso ao trabalho presencial por semanas, as chefias do meu amigo já avisaram que a flexibilidade está para ficar. Ou seja, quem quiser poderá continuar a trabalhar de forma remota, pelo menos parcialmente.
O meu amigo diz-me que não ficou muito aborrecido. Por vontade dele sentava-se em San Pedro, nas águas do Belize, e trabalhava de lá, indo ao escritório uma vez por mês para almoçar com os colegas.
O que o meu amigo não percebe é que o CEO dele, ou os outros, não estão preocupados com o bem-estar ou flexibilidade necessária à vida dele. Ou de outros como ele. Estão apenas interessados em criar robots que produzam o máximo, investindo a empresa para isso o mínimo possível.
Disse-lhe para multiplicar a realidade dele e dos milhares de colegas por mais uns milhões. Da mesma área profissional, semelhante ou até diferente. Seguradoras, bancos, serviços, tecnologias, quem sabe até ensino e saúde.
Disse-me que parecia ser uma boa e elaborada teoria da conspiração, inspirada no mundo pós-pandemia.
Respondi-lhe que parece ficção, de facto, mas é real.
Bem-vindos ao Novo Normal.