Sexta-feira, Setembro 22, 2023
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Evidência científica – Eduardo Rêgo

Eduardo Rêgo |  Professor (aposentado) do Departamento de Matemática da Faculdade de Ciências da Universidade do Porto

Há uns tempos, numa pequena publicação, fiz umas afirmações sobre “evidência científica”. Entretanto, houve quem me fizesse algumas perguntas pertinentes sobre isso e que me levaram a perceber que a leitura dessas afirmações, tal como foram feitas, pode levar a interpretações erradas do que verdadeiramente pretendia transmitir, bem como das intenções e espírito com que o fiz.

Decidi, por isso, partilhar agora, de forma algo solta, desconexa, mas de modo mais desenvolvido, as várias observações com que tentei responder a essas perguntas, pensando na eventualidade de alguém poder tirar algum proveito da sua leitura, apesar da desconexão, para melhor compreensão do que é o processo de construção no grande empreendimento cooperativo que é a Ciência.

O que escrevi na dita publicação:

«Não, um estudo recente, mesmo com “peer review” e em revista de prestígio, não é uma “evidência científica”. Porque só o tempo, que permite as “peer reviews” alargadas, constrói as verdadeiras evidências.

(Lembram-se do sr. Andrew Wakefield? A Lancet demorou 12 anos, de 1998 a 2010, a fazer a retratação do famoso artigo das vacinas e autismo.

Não há nada que possa ser dito para justificar a forma dogmática como estas “evidências” têm sido usadas – e algumas, como sobre sequelas, com o risco de exacerbar o medo das pessoas – que não pudesse ter sido dito, na altura, pelos anti-vacinas que usaram o famigerado artigo. De boas intenções está o inferno cheio.)»

1 – Uma questão de ética

Não há, em geral, nada de errado em ver e partilhar artigos recentes de, e sobre, Ciência. Pelo contrário: a sua difusão, divulgação e leitura pode contribuir para a melhoria da cultura científica da sociedade; eu próprio os vou lendo frequentemente, com interesse e muitas vezes, mas nem sempre, com prazer e proveito. Desde que seja feito na consciência da relatividade do valor desses estudos, quer em correção quer em relevância futura (mais sobre isto noutro ponto, à frente). O que é errado é usar esses artigos recentes de forma dogmática, como se fossem evidências já consolidadas. Quer para tentar “decidir” discussões com base em “argumento de autoridade” quer em situações em que se levantam óbvias questões éticas em relação à disseminação dessas “verdades”. O que acontece se a informação é suscetível de criar medos, ou exacerbá-los, ou, em sentido oposto, criar falsas expectativas de cura em certos doentes. Mesmo com verdades indiscutíveis colocam-se problemas éticos em usá-las para provocar medo ou pânico. Para a evacuação de um edifício por ameaça de bomba, ou incêndio, não é irrelevante a forma como os ocupantes são informados e orientados, sendo uma regra básica que se deve evitar estados de pânico… Se o medo ou a esperança criados se podem revelar depois infundados o problema ético agudiza-se.

Na criação de medos, o famigerado artigo das vacinas e autismo, referido na auto-citação, é dos melhores exemplos, por ser amplamente conhecido! E pelo uso que dele foi feito. Outro, actual, deste período de pandemia, tem sido o da partilha de inúmeros artigos ou estudos recentes sobre possíveis sequelas da covid-19; mesmo em pessoas contaminadas com doença ligeira ou até mesmo assintomáticas, incluindo os jovens e até as crianças (mais sobre estes estudos sobre “sequelas” e sua relação com “evidência científica”, num ponto mais adiante).

2 – Traições

Note-se que muitos artigos, em particular estes sobre “sequelas”, fazem declarações claras sobre o seu carácter transitório e as suas limitações metodológicas ou até sobre a natureza especulativa de certas partes ou conclusões. Muitas vezes declaram que os resultados são ainda provisórios e incertos e que são necessários estudos mais globais e continuados para os confirmar. É a boa prática interna da ciência, a funcionar… Acontece é que depois são partilhados sem que seja feita qualquer referência a esses avisos! Normalmente escolhendo para título da publicação algum destaque que sirva à mensagem que se quer passar e de que, supostamente, o artigo é prova (é “evidência”!), retirado do contexto e traindo, ao ignorar aqueles avisos, o espírito do próprio artigo de que afinal se estão a servir de forma oportunista.

3 – Uma curiosidade

Uma curiosidade, a propósito: recentemente, correu nas redes sociais uma bela anedota sobre as vacinas: que a Pfizer e a Moderna não tinham ainda anunciado a finalização das suas porque ainda não tinham conseguido garantir que provocavam autismo!

A anedota é boa sim, mas vários dos que vi a partilhá-la, muito divertidos, e bem, com a ferroada aos anti-vaxxers, estão entre os que também partilharam agora, nesta crise, os tais “estudos” fresquinhos, de assustar, como os das possíveis e terríveis sequelas! E como está escrito na auto-citação:

«Não há nada que possa ser dito para justificar a forma dogmática como estas “evidências” têm sido usadas – e algumas, como sobre sequelas, com o risco de exacerbar o medo das pessoas – que não pudesse ter sido dito, na altura, pelos anti-vacinas que usaram o famigerado artigo. De boas intenções está o inferno cheio.»

4 – Quando entra pelos olhos dentro

Note-se que podemos classificar, como verdadeiras “evidências científicas”, certas conclusões que podem logo ser consideradas “robustas”, sem termos de esperar pela filtragem do tempo, dada a sua natureza extremamente simples. É o caso das constatações de “tipo ontológico”, digamos, de que certas possibilidades podem de facto ocorrer, de que algo existe, acontece.

Por exemplo, volta e meia ouvimos falar de algum jovem atleta que sofreu morte súbita enquanto jogava futebol, apesar de sempre ter passado sem qualquer suspeita de algum problema de saúde pelos vários exames médicos desportivos, incluindo provas de esforço. Se a posterior autópsia detetar uma má formação cardíaca congénita como a causa da morte súbita, podemos considerá-la como evidência, robusta, de que podem existir tais patologias e que são indetetáveis pelos normais exames médicos desportivos.

Naturalmente, sabemos que essas ocorrências são muito raras e não se fazem, por isso, exames extras, mais finos, de forma rotineira e na ausência de qualquer sintoma suspeito, para detetar possíveis más formações desse tipo nos jovens atletas. Dizemos que esses casos não são “estatisticamente relevantes”…

5 – Proximidade e intuição estatística

O conceito de “estatisticamente irrelevante” é problemático… Confesso o pecado de usar frequentemente esta expressão de forma ambígua, oscilando entre dois significados. Ora no sentido psicológico de lhe associarmos um “risco negligenciável”, ora no sentido matemático da “amostra” ser insuficiente, ou ser mesmo inexistente, para podermos tirar conclusões estatísticas que nos deem alguma quantificação do “risco” em termos de probabilidades.

A relação entre considerar-se um risco “negligenciável” e a noção de qual a (im)probabilidade que lhe associamos (ainda que só intuída, só “noção”, e não quantificada) depende, é claro, do tipo de risco envolvido. E é muito subjetiva.

A nossa intuição estatística e das probabilidades é, por natureza do nosso pensamento, muito pobre. O ensino das probabilidades é, por isso, bem interessante porque há muitos exemplos de exercícios que surpreendem sempre os estudantes pelo inesperado das soluções, face a essa pobre intuição.

A própria linguagem natural, em português pelo menos, contribui para essa fraca intuição já que muitas vezes “provável” e “possível” são usados como sinónimos. E para muita gente, sem qualquer iniciação ou treino em cálculo de probabilidades, “provável” não tem uma dimensão matemática facilmente reconhecível, para lá de uma vaga noção de “mais ou menos”.

Temos tendência para considerar como “mais provável” o que acontece de forma mais próxima, proximidade que inclui o que, ainda que fisicamente distante, nos é mostrado de forma repetida…

Assim, é natural que no caso, mencionado no ponto anterior, de um jovem que falece subitamente enquanto pratica desporto, os pais dos seus amigos e colegas de equipa sintam um medo especial em relação aos seus próprios filhos. Que alguns deles exijam que os seus filhos façam exames especiais antes de os autorizarem a continuar a jogar, que alguns até os proíbam de o fazer… Que depois permaneçam sempre com algum receio latente, que antes nunca sentiram.

É também o que explica aquele velho fenómeno de as antigas casas de lotaria verem as suas vendas aumentarem imenso nas semanas seguintes a terem vendido uma sorte grande…

6 – Conversa com uma médica inteligente

Tem havido, durante esta crise, uma exploração desta característica psicológica, com o efeito perverso de criar uma noção distorcida das probabilidades e riscos que associamos à doença e, em especial, às suas formas mais graves, por efeito da repetição de “testemunhos” que, vindos de gente que “está no terreno” e descreve o que faz e vê nos hospitais (médicos e outros profissionais de saúde), ou que sofreu da doença com gravidade, os próprios ou alguém que lhes é próximo, geram em quem os houve uma sensação de proximidade.

Tendo presente, e sublinhando-o, que a relação entre “risco negligenciável” e “relevância estatística” é problemática e do domínio do subjetivo, arrisco, para tentar ilustrar a ideia dessa relação e daquela distorção, um exemplo da minha experiência pessoal (um testemunho, portanto!). Foi uma conversa que tive com uma médica de família, durante uma consulta, feita por telefone. Gostei bastante da médica, muito simpática e com bom espírito, e da forma como fez a consulta, atendendo às limitações.

A certa altura ela diz-me que sente algum receio, sim, quando está com doentes infetados (para não me alongar, deixo de lado o que levou a esta questão de se sentir ou não receio). E é uma médica que, tanto quanto soube, tem trabalhado também no hospital na ala dos doentes covid. Parecendo-me pela voz que era uma jovem, eu disse-lhe: “Ó senhora doutora., mas a senhora é bastante jovem, não é?! Pela voz, aposto que tem menos de 40 anos…”. Disse-me que tinha 30. “Então, se apanhar o vírus é quase certo que não vai ter nada ou então doença leve! Os números para os menores de 39 anos, de mortalidade ou doença grave são estatisticamente irrelevantes. Então de crianças mesmo, ou menores de 19, nem se fala…”. Ela retorquiu: “Olhe que não é bem assim! Eu tenho um amigo pouco mais velho que eu e que esteve bastante mal!” Disse-lhe que lamentava, mas que ela, como médica, sabia que em termos de saúde pública, e da percepção do risco pelas pessoas, o que conta são as estatísticas… “A doutora vai-me mandar agora começar a tomar um medicamento. E na bula vou ler sobre os efeitos secundários coisas do tipo, uma em cada mil pessoas pode ter isto, uma em cada cinco mil pode ter aquilo… E até que, embora muito raramente pode ter uma complicação mais séria, daquelas que assustam, que é melhor nem ler! Ora, a senhora doutora não vai deixar de me mandar tomar o remédio por causa disso, pois não? E se por acaso conhecer alguém que sofreu um desses efeitos secundários mais graves, com este remédio, muito menos me vai dizer isso, não é?!”

Ela riu-se, com espírito franco e disse-me: “Tenho de lhe dar razão! Mas sabe como é… Quando nos é próximo, os sentimentos falam mais alto.“ É isto!

Infelizmente, nem todos têm a capacidade de fazer esta distinção racional – o que de forma nenhuma implica deixar de lado os sentimentos ou diminuir-lhes a intensidade – e essa incapacidade – somada ao facto de que muitos testemunhos nos tocam e nos comovem sinceramente pelo seu valor humano, tem permitido, pela forma como são dados esses testemunhos ou as notícias sobre eles montadas, criar em muita gente uma noção muito distorcida das probabilidades e dos riscos.

7 – De mão na Bíblia, a verdade não mais que a verdade…

Esta distorção é ainda potenciada quando vários testemunhos, todos num mesmo sentido, são reunidos em alguma peça de revista, jornal ou audiovisual (e.g. televisão e Youtube), sem o cuidado de enquadrar a informação dada nos seus possíveis contornos estatísticos, normalmente por pura omissão, nem referência ser sequer feita a esse “pormenor” da análise científica. Pior ainda se o órgão de comunicação que o faz tiver grande prestígio.

A Time tem feito artigos com esse lamentável tipo de viés, quer sobre sequelas da covid quer sobre a “catastrófica” gestão sueca da epidemia. Totalmente unilaterais! Se a Time decidisse dedicar algum dos seus números a uma recolha pelo mundo fora de testemunhos sobre acidentes cardiovasculares de jovens saudáveis, alguns fatais, durante a prática do futebol – que nos parecem raríssimos – compostos em peças com o mesmo tipo de viés, conseguiria certamente retirar uns largos milhares de jovens desse desporto, possivelmente por pressão dos seus pais alarmados.

Mas mesmo quando na peça há referências aos aspetos estatísticos – o que é menos mau – a distorção pode existir, e é o mais comum, pelos critérios editoriais dos destaques escolhidos, a começar pelos títulos e subtítulos.

Por exemplo: ainda há poucos dias vi um artigo no Guardian (outro jornal de prestígio) dando conta de um estudo sobre um problema, detetado recentemente, de inflamação generalizada em crianças contaminadas com o vírus, que de certo modo retoma uma preocupação antiga, logo dos primeiros meses, relacionada com uma doença já conhecida, de nome Kawasaki. Trata-se de um problema de inflamação generalizada. O estudo abrangia mais de 150 crianças e no texto razoavelmente longo eram dados vários detalhes, em particular percentagens sobre a incidência ser maioritária em crianças negras, asiáticas e de minorias étnicas (BAME). No último parágrafo do artigo, uma das cientistas ouvidas dizia de forma muito clara que não era motivo para alarme dos pais, que a incidência não era muito elevada (estimavam ser de 1 em 5000) e que não era motivo a considerar relativamente à questão da abertura das escolas. Aqui está: se o critério editorial seguisse o princípio de tranquilizar e nunca correr o risco de causar receios infundados e inúteis, essas afirmações finais deveriam merecer destaque no título, ou pelo menos em subtítulo. Mas não… Assim, o artigo será partilhado e visto por muitas pessoas, muitas das quais não o lerão na totalidade até àquele ao último parágrafo…

8 – O “nada” e o futuro a Deus pertencem

Este processo de distorção da nossa já pobre intuição estatística chega a ser defendido quase como um princípio, como se fosse algo desejável e racional! José Vítor Malheiros (JVM), de quem em geral muito aprecio as ideias e os textos que publica, escreveu isto na sua página do Facebook:

«Uma pessoa amiga que tem um familiar infectado com COVID-19 acaba de me dizer que o médico da família aconselhou que os filhos se pusessem todos ao pé do infectado para ver se apanhavam todos o COVID “para ficarem imunizados”.

Sugeri que fizesse queixa do médico à Ordem dos Médicos para ver se o proíbem de exercer: E sugiro que toda a gente a quem um médico ou outro profissional de saúde dê este conselho comunique o caso ao Ministério Público e à respectiva ordem profissional.

É verdade que se fazia isso com as crianças no caso da varicela, sarampo e outras doenças infantis “benignas”, (fazia-se, já não se faz) mas o COVID não é uma delas. Quando o negacionismo invade a classe médica a situação é grave.

O facto de estatisticamente a doença não matar muitos jovens, não permite garantir NADA quanto a um caso particular em concreto.

É tão estúpido dizer isso como dizer que se pode atravessar as ruas de olhos fechados, porque a esmagadora maioria das pessoas que atravessa ruas não é atropelada. Ou dar revólveres aos miúdos para jogar roleta russa porque a probabilidade de se acertar numa bala é mais baixa que a de acertar numa câmara vazia.

É verdade que a doença mata poucos jovens e que a maior parte dos casos mortais em jovens são relativos a indivíduos com outras doenças. Mas, mais uma vez, isso é estatística. Não permite fazer previsões para um caso particular. Além de que há comorbilidades (como já nos acostumámos a dizer) que não estão diagnosticadas mas existem»

Pasmei, vindo de quem vem, sendo que JVM foi até (ou é ainda, não sei) um belíssimo jornalista de Ciência.

O pior deste texto para mim é, sem dúvida, o extremismo punitivo que JVM advoga, sugerindo que proíbam o médico de exercer! Não sei se JVM tem mais informação sobre o dito médico, que não tornou pública no seu texto e que o levem a tão extrema posição. Mas, nada mais sabendo, pergunto-me: e se o médico tem um currículo impecável com provas dadas de boa prática? Sabe-se lá, até com possíveis testemunhos emotivos – do tipo dos que andam muito em voga nestes tempos, na comunicação social e redes sociais – de doentes seus, de como eles lhes resolveu algum problema de saúde complicado, ou até lhes salvou a vida? E se o médico, que é classificado como “negacionista” for até, noutros aspetos da gestão da pandemia, mais anti-negacionista que o JVM?

Preocupa-me muito ver pessoas cuja opinião me interessa, como JVM, ou Carlos Fiolhais e André Marçal – que há tempos fizeram um apelo semelhante, de proibição do exercício da medicina, em relação a uns “médicos pela verdade” – chegarem a este tipo de extremismo punitivo.

Mas o que me interessa aqui é o argumento à volta da estatística. Deixando de lado a dúvida sobre o que JVM entenderá por o sarampo ou varicela serem “benignas” em comparação com a covid, quando se sabe, por exemplo, que o sarampo tinha efeitos secundários como perigosas encefalites ou cegueiras, o que espanta são os três últimos parágrafos. É aquele desvalorizar da importância da estatística – “isso é estatística” – já que “NADA” se pode garantir quanto a um caso particular em concreto!

Claro que JVM acaba por apelar, de forma implícita, para que façamos alguma estatística em modo intuitivo, quando para mostrar a “estupidez” de fazer considerações estatísticas, nos está a convidar a comparar os riscos de um jovem contrair covid aos riscos de ele atravessar a rua de olhos fechados ou jogar à roleta russa!

Claro que nós não orientamos a nossa vida, o nosso dia-a-dia, em função dos riscos do que é possível ou “provável” (no sentido da linguagem corrente), do que pode acontecer, mas que avaliamos como raro, mas sim em função do que sentimos que pode ocorrer com alguma probabilidade alta (no sentido matemático, ainda que só intuído), de não ser raro. Incluindo em questões de saúde, como a toma de medicamentos. Voltando, a propósito, à conversa com a médica que relatei no ponto 6, para concretizar um pouco… Tomo desde há uns meses um medicamento para a tensão. Na bula existe, como é habitual, uma secção sobre Efeitos Secundários Possíveis. Numa subsecção, Outros efeitos secundários incluem, lê-se:

“Informe o seu médico se algum dos seguintes efeitos secundários se agravar ou durar mais do que alguns dias:

Frequentes (podem afetar até 1 em 10 pessoas)

(…)

Pouco frequentes (podem afetar até 1 em 100 pessoas)

(…)

Raros (podem afetar até 1 em 1000 pessoas)

(…)

Muito raros (podem afetar até 1 em 10.000 pessoas)”

Nada de mais. Dá-nos uma ideia do que estatisticamente é aqui considerado “raro” e “muito raro”. Mas as duas primeiras subsecções é que são perturbantes:

Pare de tomar XXXXX e consulte o seu médico imediatamente se detetar qualquer um dos seguintes efeitos secundários graves – pode precisar de tratamento médico urgente:

 (…)

Informe imediatamente o seu médico se sentir:

– Um batimento cardíaco mais acelerado, descompassado ou com esforço (palpitações), dor no peito, aperto no seu peito ou problemas mais graves incluindo ataque cardíaco e AVC.

(…)

O que se deve sentir ao ler isto, face ao argumento de JVM? São com certeza ocorrências raríssimas (nem quantificadas são), mas “NADA” assegura que não aconteçam num caso particular e concreto. Afinal, por alguma razão lá estão nos efeitos secundários! E se “o caso” for de alguém como eu que até tem uma história de problemas cardíacos na família próxima… Pede-se a suspensão da médica? Faz-se uma petição contra a irresponsabilidade do INFARMED ao aprovar tal medicamento?

Poder-se-á argumentar que estes efeitos secundários do(s) medicamento(s) são muito mais raros do que os possíveis maus efeitos da covid em jovens, e que estou aqui a enviesar isso, que estará implícito no texto de JVM… Não sei se são ou não (seria preciso haver estatísticas fiáveis e consolidadas sobre os segundos daqueles efeitos, o que não acontece) mas nem isso aqui interessa: o que interessa é que ao argumentar assim, justificando por esse meio uma atitude diferente em relação à covid do que a que temos com a normal toma de medicamentos, lá estamos a dar atenção à inescapável estatística. Mas “isso é estatística”, dirá JVM… Que talvez não repare que o seu argumento é exatamente do tipo (mesma lógica) do que é usado contra as vacinas por esse grupo especialmente perigoso de “negacionistas” que são os anti-vaxxers, e que muito beberam, para a sua propaganda na altura, na famosa “evidência científica” do sr. Wakefield…

9 – Da inexatidão, mesmo na “Mais Exata das Ciências”…

Note-se que mesmo em Matemática Pura não há, à partida, segurança absoluta da correção dos artigos publicados, mesmo em revistas de prestígio, (naturalmente com peer review) e/ou da autoria de matemáticos excecionais, sem a essencial sedimentação pela passagem do tempo. Entenda-se na divisão clássica, ainda que bastante artificial, da Matemática em Pura e Aplicada, que a primeira é a que consta essencialmente, e “simplesmente”, de estabelecer conceitos e regras e a partir deles provar resultados (teoremas, corolários) e que não depende, como a segunda, de verificação da adequação, fiabilidade e, em última análise, utilidade das suas aplicações à realidade (como é o caso dos modelos matemáticos de epidemiologia, com as suas previsões, que tanto têm dado que falar durante o último ano, e mais ainda nestes dois primeiros meses do novo ano).

Então os “referees” não são suficientes para verificar se as provas matemáticas estão ou não corretas?! Afinal, uma prova é uma prova, ou está bem ou está mal! Não, não são porque há exemplos que o demonstram.

Vladimir Voevodsky foi um galardoado com a Medalha Fields em 2002, professor em Princeton, que morreu muito prematuramente em 2017 com apenas 51 anos.

[Para quem não sabe, a Medalha Fields é o mais conceituado prémio da Matemática, atribuído de quatro em quatro anos, normalmente a quatro matemáticos. Era em geral considerado como o Nobel da Matemática, embora contemple apenas matemáticos jovens, até aos 40 anos. Há agora um outro prémio, também de grande prestígio, mais recente e mais parecido com o Nobel, já que premeia matemáticos com longas carreiras, o prémio Abel. Que em função da categoria dos premiados até à data se tem estabelecido com um prestígio crescente, tornando-se no verdadeiro equivalente ao Nobel.

A partir de certa altura ele dedicou-se a um seu projeto de criar e estabelecer novos fundamentos para a Matemática (chamados “Univalent Foundations”), com o objetivo de vir a permitir a verificação sistemática de provas por computador. É um objetivo que vai muito além do já conhecido uso de computação (forte e imprescindível, por resolver cálculos impossíveis de realizar “à mão” em tempo útil) como parte integrante de certas provas (o protótipo original foi a prova do Teorema das Quatro Cores) bem como da chamada Matemática Experimental, área em expansão desde há vários anos, já com revistas dedicadas, em que à falta de provas formais se usam cálculos computacionais como um tipo de evidência empírica para a aceitação de certos resultados ou hipóteses (sobrando ainda a possibilidade de virem a ser feitas verdadeiras provas formais). O objetivo era poder verificar as provas formais dadas pelos matemáticos por métodos automáticos.

Ora, o que motivou esse projeto a Voevodsky foi ter encontrado um erro num seu artigo! E ter tomado consciência de que essas ocorrências poderão ser mais frequentes do que julgamos.

Um outro exemplo, bastante anterior, mas envolvendo também um artigo de um medalha Fields: David Mumford (grande nome da Geometria Algébrica) teve um artigo, citado e usado por mais de 10 anos por dezenas de investigadores, em particular num resultado (teorema) que se veio a descobrir que estava errado. Não a prova do resultado, isso seria menos mau sendo passível de correção, mas o próprio resultado, já que se veio a descobrir um contra-exemplo.

Há circunstâncias especiais, ou de urgência social como no atual desenvolvimento das vacinas para o novo corona – que permitiu a sua produção num período de tempo ainda há pouco considerado irrealista – ou pela importância dos resultados anunciados, que mobilizam um número grande de especialistas da área, por vezes quase toda a comunidade, o que permite uma aceleração do tempo normal de desenvolvimento e produção e/ou de verificação dos resultados. Mas o tempo necessário – medido pelo número de investigadores da área envolvidos no processo, muito para lá do restrito grupo dos revisores – está lá, ainda que “concentrado” no tempo normal…

Por exemplo: quando Gregori Perelman provou a Conjetura de Geometrização de Thurston (e com isso a famosa de Poincaré), em 2003 (o que lhe valeu a Medalha Fields em 2006, que ele recusou) fê-lo apenas com a publicação de dois preprints no arXiv (no seguimento de um outro do ano anterior). Não veio a haver outra publicação de Perelman, na forma de artigo revisto, mas nos três anos seguintes vários matemáticos da área publicaram diversos trabalhos, incluindo livros, detalhando e explicando as ideias e os pormenores da prova…

Esta aceleração do tempo pode ter também efeitos negativos, ampliando certos defeitos, crónicos, da produção e verificação de resultados científicos, como veremos num ponto seguinte, em artigos e estudos sobre esta pandemia.

10 – A Montanha de Papel

Se mesmo no caso da Matemática Pura, da simples verificação lógica de provas, o decorrer do tempo é essencial para a melhor e mais segura certificação dos resultados, ainda mais o quando há uma componente experimental, com a necessidade de as experiências serem reproduzidas de forma independente, ou estudos estatísticos que, pela própria natureza do objeto de estudo, requeiram um trabalho de recolha e análise comparada de dados, continuadas no tempo. É o caso de muita da estatística nas áreas da saúde, em particular os estudos médicos sobre sequelas: pela própria vagueza da noção…

Poder-se-á argumentar que apesar de não haver uma garantia absoluta de correção de um estudo, tanto menos quanto ele seja muito recente, mesmo que com a revisão por pares, estes casos, como os que apresentei na matemática ou o do famoso artigo do senhor Wakefield na Lancet, serão raros, ou mesmo muito raros. E se essas exceções não têm relevância estatística, de uma forma, geral usar os estudos, mesmo recentes, como evidência científica é aceitável já que a probabilidade de estarmos a passar uma informação errada é muito baixa e portanto as questões éticas que se colocam quando a sua divulgação pode trazer efeitos emocionais indesejáveis (discutivelmente), como o exacerbar de medos ou a criação de falsas esperanças, são menos problemáticas… Será com certeza verdade que estes casos são raros (não sei de nenhuma estatística sobre isso!). Há, no entanto, uma outra razão, mais forte e com grande incidência, frequente até, para que aquelas questões éticas não sejam consideradas de forma mais leve: não tem a ver com possibilidade de erros, mas com a robustez e relevância. Não é por algo, em particular um artigo ou estudo, se apresentar livre de erros que se torna conhecimento relevante e útil! Essa razão é a origem da expressão “montanha de papel”, título desta secção.

De forma sucinta, refere-se a uma certa inutilidade e irrelevância da literatura científica, devidas ao fraco impacto da maioria dos artigos. Que assim, e em sobreprodução, teriam como maior “contribuição” o acrescentar da dita montanha (felizmente, hoje em dia o fenómeno não tem as mesmas desvantagens de desperdício de papel, já que grande parte da comunicação científica se faz agora na forma digital, com PDF, etc.). Na verdade, constata-se essa falta de impacto pelo facto de que a esmagadora maioria dos artigos acaba por ter poucos mais leitores do que os seus autores e revisores.

Para quem nunca tenha ouvido falar desta questão, deixo a referência [1] com que podem iniciar-se no interessante fenómeno da Montanha de Papel.

Há muitas várias razões para o fenómeno, que são mais do âmbito da sociologia da ciência do que resultado da inevitável gradação em pirâmide de qualidade na lógica pura da produção científica: para cada ideia boa, produtiva, deverá haver uma série de outras, em maior número, não tão boas ou mesmo fracas, ou que, sendo originalmente boas, perdem, entretanto, a sua relevância precisamente pela construção a partir delas de outras melhores. Essas razões sociológicas são parte do sentido da conhecida expressão: Publish or Perish! Eu descobri-a há mais de 40 anos, como o nome de uma editora de livros científicos. Resumidamente refere-se à necessidade de publicar por razões de “sobrevivência” profissional: para engrossar currículos, progredir na carreira, para concorrer a bolsas e subsídios, a concursos, etc. De forma paralela pode também referir-se à publicação científica como negócio das companhias editoras. Não se trata aqui de uma crítica à Ciência, vinda do exterior. É internamente que estes aspetos de condicionamento da produção científica são criticados, pelos próprios cientistas. Que criticam e muito se queixam do negócio das editoras: que estas os usam de forma gratuita, como autores e como revisores. Num jogo viciado que acaba por contar com a colaboração resignada dos próprios cientistas queixosos, dentro de uma lógica que lembra um pouco a exploração dos fornecedores pelas grandes superfícies, já que estar no corpo editorial de uma revista de prestígio, ou publicar um livro numa dessas editoras, ou um artigo numa revista de topo, dá prestígio e melhora o currículo.

Mas há movimentos e até iniciativas já concretizadas para a publicação independente e liberta dos espartilhos das grandes editoras. E acabou de ser anunciado há poucos dias pela União Europeia a intenção de lançar uma plataforma para publicação científica precisamente para contrariar os abusos dos grandes monopólios nesta área.

Há também o lado mais negro deste negócio, com revistas que cobram pela publicação dos artigos e com fraca qualidade de revisão, quando não uma verdadeira farsa, em que os próprios cientistas são contactados pela revista e convidados a publicar e simultaneamente a juntarem-se ao corpo editorial! Os cientistas que internamente também se criticam entre si, acusando outros de sacrificarem a profundeza e qualidade da investigação à estratégia de inflacionar artificialmente a sua produção, com o fim de melhorar o seu currículo à luz de critérios usuais de avaliação, como número de artigos, índices de impacto (com táticas de auto-citação e citação cruzada entre “pares” mas das mesmas pequenas tribos cooperativas) etc.

Estes aspetos negativos da produção científica existem há muitos anos e a situação não melhorou, pelo contrário. Piorou muito com o constante aumento da precariedade profissional em que muitos investigadores são mantidos anos a fio, com a obrigação de produção a curto prazo que justifique a bolsa para o período seguinte, e com o associado aumento brutal da competição pelos poucos lugares disponíveis o que de novo convida ao inflacionar artificial dos currículos: Publish or Perish!

Lembro-me de um artigo de opinião do famoso matemático Saunders Mac Lane, nas Notices da AMS, há mais de 20 anos, em que ele criticava essa precariedade profissional e os seus efeitos adversos sobre a qualidade da investigação, referindo-se à dependência dos jovens investigadores sem colocação das chamadas “summer grants”. Dizia ele que para a investigação não é um grande problema que haja investigadores que na segurança do seu emprego pode gastar tempo a investigar problemas “impossíveis” e que pouco ou nada daí produzam. O grande problema é haver muitos outros que não dispõem desse tempo nem de segurança profissional para o poderem também fazer.

Ou seja, sem a precariedade profissional, a Montanha de Papel não desapareceria, mas seria bem menor e o papel de muito melhor qualidade média!

11 – Uma amostra de amostra

Esta crónica, e quase estrutural, “sobreprodução” de artigos científicos, para a dita Montanha de Papel, sofreu nas áreas científicas mais diretamente ligadas à pandemia um visível incremento durante o último ano. Sem surpresa, já que também aqui, na produção científica, uma crise é também uma oportunidade… De obter as mais-valias ligadas à ideia do publish or perish, de forma mais rápida. Naturalmente que a pressa não é amiga do rigor e da qualidade. E na referência [2], podem ver como, logo desde o início da pandemia, se verificou um significativo aumento na produção de artigos, com o efeito de uma grande percentagem deles não se apoiarem em estudos estatísticos com amostras minimamente representativas e a sugestão de como a pressão da procura poderá, associadamente, ter provocado um aligeirar dos standards das revistas para a aceitação de artigos…

Dou um exemplo que me parece bastante claro: [3] é um artigo sobre o potencial de contaminação das crianças. Que eu vi, há já algum tempo, partilhado no Facebook, como defesa do fecho das escolas. Resumidamente: na introdução, o artigo reclama a sua importância e oportunidade em relação com a questão da decisão sobre abertura ou encerramento das escolas! Assume, portanto, um papel político… A conclusão central do estudo é que as crianças contaminadas, mesmo assintomáticas, podem ter cargas virais até sete vezes superiores à de adultos doentes, sintomáticos! Ou seja, as escolas serão um vetor fortíssimo de contágio e disseminação. Especialmente por causa da presença de assintomáticas nesse grupo, como é óbvio. Qual era a amostra do estudo? Bom, foram 24 crianças contaminadas de um total de 50 crianças estudadas. 24 crianças! Um número menor do que o dos autores do artigo, 30! Mas, pior, percorrendo com alguma atenção o artigo, não consegui encontrar uma indicação, algo que permitisse perceber, quantas dessas 24 crianças eram assintomáticas! Era só uma, eram cinco, eram a metade? Nem que critérios poderão ter sido usados para as considerar ou não assintomáticas… Uma amostra insignificante e dentro dela uma informação “estatística” importantíssima que não é dada nem explicada, o que contrasta com o tom da introdução.

O estudo tem uns meses, mas é bom por isso mesmo, porque ilustra bem a caducidade precoce de muitas destas “evidências” científicas. Na verdade, neste momento há especialistas que dizem que, no sentido oposto ao deste estudozinho (na amostra que não no número de autores!), não há evidência conclusiva, nem há consenso, que as escolas sejam um vetor especial de transmissibilidade. Pelo contrário há até especialistas, como Henrique de Barros, que ainda recentemente afirmou que os dados existentes indicam até que nas famílias com crianças se tem verificado um menor nível de contaminação. Até Manuel Carmo Gomes, que juntamente com o matemático Carlos Antunes assessorava as reuniões do INFARMED, e que defendia, com base nas previsões dos seus modelos matemáticos, um fecho urgente das escolas, o fez, como ele próprio disse, por um princípio de precaução, embora admitindo que não há consenso nem evidências sobre o real peso das escolas no processo de contágio. Mas com sete vezes a carga viral de um adulto doente… Esqueceram-se ou escapou-lhes este alargado estudo! O que vale agora, passados uns meses, aquele estudo que eu vi partilhado?

12 – Blockbusters de evidências…

Este ano de pandemia criou um curioso e, para mim divertidíssimo, epifenómeno em torno da dita Montanha de Papel. Da situação habitual em que uma larga maioria dos artigos não conseguem angariar muitos mais leitores para além dos próprios autores e revisores, vemos agora imensos artigos, das áreas relacionadas com o estudo da pandemia, que são vistos e referidos por um número anormalmente alto de leitores, por vezes largos milhares, altamente improváveis em situação normal, através de partilhas e “likes” pelas redes sociais ou em trabalhos da comunicação social. Claro que são apenas e só “vistos”, não verdadeiramente “lidos” pelos pares que os possam entender, apreciar e avaliar. Não é preciso em geral mais do que saber algum inglês – não se trata de ler Shakespeare – que seja suficiente para conseguir ler os “abstracts” e as “conclusions” e retirar-lhes algum sentido. Do assunto pode saber-se zero! Se o sentido retirado reforça um ponto de vista que o leitor já acarinhava, a cadeia prossegue com mais uma partilha. E, como já referi antes, frequentemente escolhendo para título dessa partilha alguma parte retirada do contexto e esquecendo, traiçoeiramente, os avisos incluídos no artigo sobre as suas próprias limitações.

Quem sabe, neste futuro prometido de loucuras, venham a ser introduzidos novos parâmetros de impacto para a avaliação interna da literatura científica, integrando também os das redes sociais…

Vou dar um exemplo para concretizar um pouco este divertido epifenómeno.

Há relativamente pouco tempo, em Novembro passado, deparando-me com uma partilha no Facebook (que fui lendo pela desagradável sensação que o estilo me causou e pela curiosidade mórbida de ver onde aquilo chegava) descobri a existência de um blog e página de FB com um nome atrativo e muito sério que mete “ciência” e “evidência” e que é promovido por um jovem médico (que, percebi mais tarde, é bastante mediático e aparece até como consultor do Polígrafo da SIC.). Estranhamente desconhecia o blog/página, embora já não fosse recente e seja até bastante conhecido, pois tem mais de 70.000 seguidores.

Deixo de lado a questão do tal estilo que me desagradou: de assédio e achincalhamento público (pelourinho de rede social) de um conhecido “negacionista”. Direi algo mais sobre isto no Epílogo, já que posteriormente fui verificando que o assédio aos “inimigos negacionistas” é o modus operandi do blog. Que tem muito pouco de científico e é sobretudo uma agência de propaganda ao serviço de certos ódios em nome de um suposto rigor e “evidência” científicas. Aos meus olhos, e em função do que aqui vou tentando explicar sobre “evidência científica”, uma gigantesca fraude.

Parei de ler aquele auto-de-fé – foi vencida a inércia da minha curiosidade mórbida – quando a certo ponto, como argumento para contrariar algo que o negacionista teria afirmado, vejo escrito:

“Mas a realidade é que…”, seguido de uma referência para um estudo fresquinho de poucas semanas. Quem teve a paciência de me ler até aqui, o que já disse sobre o valor relativo dos artigos, sobre o que é evidência recente, percebe porque parei. Para este jovem médico, apóstolo da “ciência” e da “evidência”, um artigo fresquinho faz a realidade… “Mas a realidade é que…”

Isto sim, é Ciência! E verdadeira argumentação e debate científicos!

Mas decidi então dar uma vista de olhos ao blog para confirmar o estilo (a curiosidade mórbida voltou), e encontrei num dos posts que vi uma interessante e muito reveladora troca de comentários entre alguns seguidores. Havia um ponto de discórdia e a argumentação entre eles consistia essencialmente, em ritmo de parada e resposta, na partilha de links para vários estudo e artigos: uns que mostravam isto e outros que, contradizendo-os, mostravam aquilo… Com “evidências científicas” contraditórias, a dada altura um dos contentores achou que podia resolver a disputa a seu favor argumentando que artigos para o seu ponto de vista tinha encontrado 23, enquanto do outro lado só tinham sido referidos 3! Não é delicioso?! Fui obviamente espreitar os perfis dos contendedores: nenhum aparentava ter qualquer preparação profissional ou académica para poder ler e perceber verdadeiramente aqueles artigos que partilhava! E fiquei com esta certeza de que anda por aí muita gente que de ciência muito pouco sabe mas que se especializaram em pesquisar bases e repositórios de artigos sobre a pandemia (o Google ajuda imenso nessa tarefa) e lendo em rápidas diagonais os “abstracts” e “conclusions”, talvez alguns gráficos e dados, se vão sentindo muito informados, atualizados e conhecedores das “evidências científicas”… Do que é Ciência! E, seguindo o seu pastor, do que é, enfim, verdadeiramente a “realidade”! São os construtores deste novo epifenómeno pandémico, desta nova moda, marco na história da literatura científica, dos artigos que agora são muito “mais vistos que lidos!”

13 – Na Apanha das Cerejas

Sim, o título da secção refere-se à conhecida expressão inglesa cherry-picking:

The action or practice of choosing and taking only the most beneficial or profitable items, opportunities, etc., from what is available.

“it is an exaggeration based on the cherry-picking of facts”

Cherry-picking de factos, é o que tem feito diariamente, de uma forma massacrante, a comunicação social: sempre a escolher as notícias, as imagens, os testemunhos, os números (desenquadrados) que sirvam o propósito de exagerar a gravidade da situação e, através do efeito psicológico por aparente proximidade que já referi, empolar a noção de risco e os receios.

No que é o tema central deste texto, “evidência científica”, duas observações:

A acusação a alguém de ter feito cherry-picking tem sido muito frequentemente usada como forma de argumento nas disputas que envolvem a apresentação de estudos e artigos como evidências científicas. Alguém escolheu os artigos que lhe interessavam, e ignorou os outros. Há aqui um processo de atribuição de intenções, já que nunca vejo nesse tipo de acusação a referência aos outros artigos que supostamente o acusado conheceria, mas que ignora ou esconde, nem a prova desse conhecimento… Não havendo prova desse dolo, se a acusação tem de facto fundamento na existência de alguma literatura alternativa à apresentada pelo acusado, deveria esta ser simplesmente exibida pelo acusador… E esses processos de intenções sem prova serão em geral injustos, já que a maioria das pessoas não sendo especialistas, profissionais da área, não segue o fluxo da produção para saber naturalmente da existência de estudos com conclusões de algum modo divergentes; nem mesmo os não-especialistas, mas que são especialistas na pesquisa em bases de artigos e na leitura em diagonal de “abstracts” e “conclusions”, como descrevi no ponto anterior. As opiniões a este nível, nas redes sociais ou na comunicação social por melhores e mais documentadas que estejam não são teses ou dissertações académicas em que, aí sim, há uma obrigação de considerar e comparar da melhor forma a literatura relevante que está disponível. Não duvidem: quando ouvirem alguém a fazer uma acusação de cherry-picking, a usar esse (em geral) desonesto argumento, podem estar certos de que se trata de mais um exemplo em que se aplica o velho dito popular “Fala o roto para o esfarrapado e o sujo para o mal lavado”.

A segunda observação é mais importante: a simples possibilidade de se poder fazer cherry-picking entre artigos e estudos que apresentam conclusões divergentes, como aconteceria naquela situação da troca de mensagens com links de artigos que relatei na secção anterior, é prova de mais uma grande fragilidade na apresentação de artigos e estudos como “evidência científica”.

Mas não é uma fragilidade interna! Internamente é sinal de debate em diversidade: a existência de artigos com conclusões divergentes ou mesmo contraditórias não é nada de extraordinário, têm o seu valor próprio no processo da construção da ciência e das verdadeiras evidências científicas, com essas divergências a serem resolvidas no tempo! A fragilidade é externa, está no artigo tornado moeda de informação científica para o grande público, na sua apresentação e uso como argumento, como tantas vezes vem sendo feito, na ignorância de artigos divergentes e, sobretudo, de forma dogmática e assertiva: como dizia o outro, “A realidade é que…”

14 – As Fénix da Montanha de Papel

Uma curta nota relativa à Montanha de Papel. E em contraponto à ideia de desperdício que alguns lhe podem associar. Na minha opinião erradamente… Pela maioria dos artigos produzidos terem pouca relevância no tempo, não significa que estejam todos para sempre mortos! Pelo menos na matemática, acontece por vezes que alguma ideia que não atraiu muita atenção e estava enterrada em algum artigo esquecido é resgatada anos mais tarde e se revela muito útil, por vezes em ambientes e com objetivos diferentes daqueles com que foi criada… Os exemplos não são frequentes, mas existem!

Acontece também, e essa é uma das belezas da Ciência (não faltam exemplos na Física e na Matemática pelo menos, que são os que melhor conheço, sobretudo os segundos) que ideias antagónicas num certo momento da história, colocadas então como escolhas que se excluíam, são mais tarde integradas sem essa necessidade de escolha e colocadas em relação num novo quadro de conhecimento mais amplo e geral.

Por vezes esse desenvolvimento e integração posterior mostra que o antigo antagonismo entre as ideias, não se devia tanto ao que mais tarde aparece refinado como a sua verdadeira essência, o que nelas era nuclear, mas sobretudo a conclusões e interpretações associadas que os seus criadores e defensores faziam.

Isto faz-me pensar que quando vemos a apresentação de dois artigos com conclusões divergentes, em disputa, como no exemplo que contei na secção 12, pode bem acontecer, em alguns casos, que no essencial – o tipo de estudos feitos, os dados estatísticos obtidos, a metodologia seguida, etc. – os dois artigos até estejam em grande sintonia e a diferença esteja nas conclusões que os autores tiram. Que podem não ser tão antagónicas como um leigo, que só consegue mesmo ler os “abstracts” e “conclusions” e nada percebe do âmago, as vê… Isto é, pode acontecer que os autores dos dois artigos apresentados pelos leigos como antagónicos, chegassem facilmente entre eles, em conferência, a uma posição consensual sobre conclusões em comum a tirar dos dois trabalhos…

15 – Um sublinhado! E a verdadeira utilidade das “peer review”…

O sublinhado é do que escrevi no ponto 1- Uma questão de ética. Tentando não me repetir, quero acrescentar três observações… Três sublinhados!

O primeiro sublinhado é que se as questões éticas que abordei naquela secção se colocam (sucintamente: é aceitável exacerbar os medos e receios naturais das pessoas?) elas ganham ainda mais pertinência à luz das fragilidades das “evidências científicas” que são em geral invocadas, sejam artigos ou estudos científicos ou testemunhos de especialistas, fragilidades para que tentei chamar a atenção, e descrever, até aqui.

Se provocar um alarme, ou o modo de o fazer, mesmo sobre factos ou verdades confirmadas é questionável em várias situações – inclusive por, para além das questões éticas, poder ser mesmo prejudicial ao objetivo primeiro que esse alarme visa – mais o é se for dado sobre o que são meras hipóteses ou suspeitas não confirmadas e de probabilidade duvidosa…

O segundo sublinhado é feito a traço grosso!

O que tenho vindo a dizer sobre as fragilidades da noção corriqueira de “evidência científica” em nada pretende desvalorizar a Ciência. Nada! Não é essa a minha intenção e a ideia repugna-me. Na minha opinião, a Ciência tem vivido bem com os seus defeitos e fragilidades e seria ridículo e pueril tentar fazer algum tipo de ecologia purificadora, de cariz revisionista, sobre os seus modos de produção e inerentes falhas e desperdícios. Mas igualmente mau é ignorar essas fragilidades, não ter delas consciência, tanto mais que elas são reveladas essencialmente pela própria crítica interna, feita pelos cientistas.

Nem tão pouco pretende ser crítico em relação a algumas motivações e opções dos cientistas que tanto contribuem para essas fragilidades, como as inerentes à Montanha de Papel e que resultam em larga medida da luta pela sobrevivência, do Publish or Perish. Ainda que nessa “sobrevivência” se incluam também algumas formas de competição académica não muito louváveis, eticamente. Mas infelizmente, na maioria dos casos, é mesmo uma questão de “sobrevivência” básica, a de assegurar e manter um ganha-pão ou de tentar melhorá-lo… Para além da habitual romantização das histórias de sucesso – a abnegação, a dedicação, o esforço, até algum sacrifício – e que tem aderência à realidade em alguns casos, está a verdadeira realidade da maioria, incluindo a de muitos dos casos de sucesso. E nessa realidade – que além do mérito próprio é feita de muitos imponderáveis de sorte e azar, de oportunidades ou da sua escassez – em que o mais urgente e grave é a já mencionada precariedade dos mais jovens investigadores, existe ainda o problema, menos grave é certo, de muitos académicos que embora vivendo no “luxo” de um emprego seguro, viram e veem as suas carreiras encalhadas por falta de oportunidades. E sabe-se como a falta de perspetivas de sentir o seu trabalho “vivo” por alguma forma de reconhecimento e préstimo exteriores, no mundo “lá fora”, pode ser um inibidor da vontade de criar; pelo menos para os comuns mortais, excluídos aqueles perfis das inabaláveis vontades criadoras, “contra tudo e contra todos”, “mesmo a meio das maiores adversidades”, que compõem parte da referida romantização dos casos de sucesso.

Não apenas na produção científica, mas em outras atividades criativas, como, por exemplo, as Artes. Ainda há dias vi uma belíssima entrevista de um amigo meu, músico, um dos criadores e responsáveis pela fantástica associação PortaJazz do Porto (um exemplo notável do que é trabalho associativo e espírito cooperativo, numa classe profissional) em que ele falou da existência desta relação da menor motivação com a falta de oportunidades.

Entre os encalhados na carreira académica, embora no “luxo” da relativa segurança do seu emprego, alguns sem grandes perspetivas de ainda desencalharem em tempo útil, enquanto relativamente jovens, encontram-se muitos que tendo imensa qualidade, mais que suficiente para terem encontrado bons empregos e oportunidades no estrangeiro, só não engrossaram esse fluxo da nossa exportação de talento científico por razões mundanas: família, filhos em idades já complicadas para mudanças tão radicais, etc.

[Declaração de viés: a minha leniência para com a influência de razões exteriores e mundanas na investigação, e nos seus superiores objetivos e pureza, poderá dever-se à minha própria experiência. Cedo escolhi, livremente, e de forma bem ponderada e racional, prioridades de “sobrevivência” financeira, assumindo o risco – que se veio a confirmar – de sobrevivência da minha investigação. Sem, até hoje, qualquer arrependimento dessas escolhas. Curiosamente, nem sequer do ponto de vista científico e matemático: o meu afastamento da investigação e da minha área de formação especializada, em que no entanto pude – contra a minha falta natural de talento – fazer mais, criativamente, do que algum dia pensara estar ao meu alcance, acabou por me levar, em diletante despreocupação e sem sentido de urgência, a aprender e adquirir uma cultura razoável sobre outras partes da Matemática que considero bem mais interessantes, complexas e nucleares, ou fundacionais – Lógica, Fundamentos e associadamente, em estreita ligação enzimática, Filosofia da Matemática – apesar do meu fraco talento ser aí ainda menor… Mas chega de derivação: isto já não é parte do propósito de “catarse pandémica” deste longo exercício de escrita, mas do domínio da regressão psicanalítica!]

A publicação científica é uma parte central e indispensável da construção da Ciência, sendo o que permite, através dos seus vários suportes, uma comunicação eficiente e universal dentro da comunidade de especialistas das diversas áreas. Repetindo-me, parece-me ridícula qualquer tentativa de desvalorizá-la através de preocupações “ecológicas” com os desperdícios que gera. E o papel das peer review no processo é absolutamente essencial para a eficiência na produção científica. O que uma revisão por pares garante ao leitor é uma muito menor probabilidade de vir a encontrar por si, ao fim de várias horas, ou mesmo dias ou semanas, algum erro, até grosseiro, que destrua por completo o interesse do artigo. A revisão por pares é acima de tudo uma forma de acautelar que não há grandes desperdícios de tempo, aos outros cientistas, em geral não muitos (é o fenómeno da Montanha de Papel), mas que podem ser dezenas, centenas, milhares… Se, não tendo conhecimento anterior da competência dos autores, eu tiver confiança no artigo, por ter sido publicado numa revista de prestígio, posso até ir usando os resultados desse artigo, sem ter eu próprio verificado a sua correção. Claro que a garantia não é total, como mostrei com os exemplos que já referi de erros em artigos de matemática publicados. Mas é alguma e essencial à eficiência! Agora, o que os referees não dão é uma garantia absoluta. Nem da correção de todo o conteúdo de uma publicação nem, sobretudo, da sua relevância científica no decorrer do tempo.

Espero ter tornado claro que o que venho criticando, não é a publicação científica em si, como processo interno e essencial à construção científica, mas sim o uso externo que dela tem sido feito durante a pandemia, a forma como tem sido feita a sua divulgação pública, as mais das vezes de forma dogmática e distorcida!

O terceiro sublinhado é no sentido de lembrar, em relação às questões éticas referidas, que os alertas sobre os possíveis efeitos secundários da exacerbação do medo, que se iniciaram muito cedo – logo depois de Março de 2020 quando verificaram, e lançaram o alerta, que as chamadas de urgência para ameaças de AVCs tinham caído 30% num mês e a seguir também sobre a queda abrupta das idas às urgências – se revelaram, com o tempo, nada alarmistas, mas tristemente justificados.

Os números e estimativas sobre consultas e diagnósticos não-realizados, cirurgias e tratamentos adiados, agravamento de doenças, etc. falam por si. Sobre esses números, ouvir, por exemplo testemunhos atuais de médicos oncologistas sobre os problemas associados, é deprimente… Em particular, sobre o aumento dos diagnósticos em estados mais avançados das doenças.

São testemunhos apenas, não têm por isso, é claro, por si só qualquer valor estatístico, mas ao contrário do que aconteceu com muitos dos testemunhos da campanha do terror covídico, vêm sobre aqueles números impressionantes.

A estes testemunhos acrescentam-se os de médicos cardiologistas ou de responsáveis da Sociedade Portuguesa do AVC. E se grande parte, certamente a maior, dos efeitos colaterais da crise se deveram às opções tomadas na gestão do sistema de saúde com o desvio e concentração de esforços na covid, aqueles testemunhos, e muitos outros, confirmam também o esperado: uma parte desses efeitos colaterais deveram-se também à diminuição da procura de cuidados médicos pelas pessoas doentes por medo de contaminação, evitando deslocar-se às urgências e aos hospitais.

Paralelamente constatou-se um enorme aumento da mortalidade, um “excesso de mortalidade” em 2020, com picos atípicos como aconteceu em Julho, a que se seguiu uma mortalidade especialmente elevada durante as primeiras semanas deste ano, com os valores máximos de casos covid e coincidindo também com a vaga de frio que ocorreu.

Seria bom que fosse feito um estudo detalhado e sério das possíveis razões para esse “excesso de mortalidade”, o que passará inevitavelmente por estudar, de forma comparada, vários parâmetros, como as variações positivas e negativas do número de mortes pelas doenças ou causas mais comuns, análise (possivelmente estatística) da história clínica de acompanhamento e assistência que foi dada nos vários casos, etc.

Falando de evidência científica, quero deixar claro que o excesso de mortalidade não fica explicado, nem de perto nem de longe, por uns simples exercícios de modelação matemática, em que se concluiu que a covid é responsável por x% desse excesso, com um elevadíssimo x, como vi feito duas vezes (não sei se houve outras) pelo professor Carlos Antunes (que fazia parte da equipa do professor Manuel Carmo Gomes que aconselhava as reuniões do INFARMED). Já escrevi numa outra altura um texto, algo longo também (mas nada que se compare), tentando explicar as fragilidades desses exercícios. Repito apenas o que disse a Carlos Antunes num comentário que fiz na primeira dessas duas publicações de que tive conhecimento: nada vejo de mal em que façam esse tipo de exercício, o que encaro mal é a forma como depois eles são usados e partilhados, tomados como uma “prova” matemática da conclusão a que chegam (que x% do excesso de mortalidade se deveu de facto à covid). E isso acontece, em particular, e infelizmente, pela mão dos que em melhor posição estariam para avaliar por si mesmos essas fragilidades e limitações deste tipo de exercícios: a gente da matemática. É conhecida no meio a máxima que diz “Todos os modelos estão errados mas alguns são úteis”… Só que falará mais alto um certo seguidismo corporativo e acrítico, muito motivado pelo orgulho fascinado no poder da sua disciplina. Que existe de facto, mas não é este e tem limites: o maior, inescapável, quando se trata de modelação, é a própria realidade que se pretende modelar. Não é difícil imaginar “o professor de matemática” de um grupo de amigos ou família, encerrar olimpicamente qualquer interessante discussão sobre o aumento de mortalidade informando que já foi “provado matematicamente” que foi quase todo covid, enquanto refere o estudo de Carlos Antunes, professor e matemático da FCUL!

Neste exercício de catarse não poderia deixar de referir agora, a propósito, o que, ainda hoje, me aparece como o exemplo mais estranho e paradoxal do maniqueísmo que foi gerado durante a pandemia, que se alimentou da estratégia de criar dilemas entre falsas polaridades. Refiro-me à indiferença ou mesmo desvalorização daqueles alertas para os perigos de danos colaterais na saúde. Apesar dos alertas claros, feitos por médicos e serviços de saúde, logo nos primeiros meses da pandemia, vi imensa gente que enquanto exprimia grande receio e preocupação com os perigos do novo vírus, alguma de forma incansável, parecia ficar totalmente indiferente a esta questão dos danos colaterais na saúde, quando não se dava até ao trabalho de tentar desvalorizar o problema, como veremos num exemplo da próxima secção. Algo incompreensível, porque não há nada de contraditório em sentir as duas preocupações, com a pandemia e com os danos colaterais das medidas para a combater: pelo contrário, é o que pareceria racional. Mas era como se a preocupação com os danos colaterais pudesse tirar foco à preocupação com o vírus e a sua doença. Como se houvesse medo de que outras preocupações pudessem distrair as pessoas e tirar eficácia ao “grande medo” que a narrativa predominante sempre pretendeu incutir. Um comportamento muito pouco racional e típico das obsessões maníacas…

16 – É só mesmo pelo exemplo…

Entendo que o exemplo que aqui vou dar, poderá ser lido, também, como a admissão de um viés: o da muito fraca opinião que tenho sobre o blog/página sobre “ciência” e “evidência” e seu promotor, que referi na secção 12. Mas não é minha intenção deixar-me resvalar para a fulanização nos argumentos, tão frequente nos debates sobre as verdadeiras ou falsas expertises para a pandemia. Não que critique sem excepção esse processo de fulanização, essa tendência para discutir pessoas em vez de ideias: em alguns casos tenho de aceitar que haja quem reaja aos ataques indecentes de que são alvo respondendo na mesma moeda. Há na verdade gente tão indecente e sem escrúpulos nesse processo de propaganda fulanizada, que é natural que algumas das suas vítimas, não tendo começado elas o processo, procurem reparação…

Acontece que as recordações do ponto 12, sobre a dita página, me fizeram recordar também este exemplo que serve como uma boa ilustração de três aspetos que já abordei. É, portanto, “só mesmo pelo exemplo”…

Quando em Novembro passado descobri essa página, pareceu-me reconhecer o nome do promotor, Cerqueira, mas não me lembrava de onde. Acabei por descobrir que tinha sido o autor de um artigo no Observador, publicado em Junho, e que me tinha deixado uma má impressão, precisamente por causa desta questão de desvalorização dos danos colaterais… Era um artigo contra os que ele apelidava de “Messias do Covid-19”, que acusava de propagarem falsa informação científica. Li na altura o artigo porque me apareceu partilhado e muito apreciado por algumas pessoas por quem tinha, e tenho, grande consideração. Até que cheguei à parte que aqui reproduzo e que constitui o exemplo:
“E as mortes indiretas? E as pessoas que ficaram sem serviços de saúde?

Dizem os Messias que morreram mais pessoas por não acederem aos serviços de saúde do que por Covid-19. É o impacto da “propaganda do medo”. É possível que tenham razão apesar de três estudos recentes, realizados nos EUA e no Reino Unido, demonstrarem que não houve aumento de mortalidade por doenças cardiovasculares (1,2) e não houve diminuição de apoio por parte do sistema de emergência a doenças cardiovasculares.”

Aqui está bem clara a ideia de que uns “estudos recentes”, em número de três, e apenas sobre um tipo de doença, podem ser vistos como podendo rebater uma ideia e acalmar uma preocupação que tiveram origem em constatações inegavelmente preocupantes, pelo mais elementar bom-senso. Enquanto escrevia aquela última frase, sobre a não diminuição de apoio do sistema de emergência a doenças cardiovasculares, noutros países, esquecia que, por cá, o primeiro alarme, que já referi, tinha sido a diminuição do número de chamadas da linha AVC em 30%. Uma diminuição de apoio, ainda que devido à falta de pedidos de assistência e não de meios. O alarme seguinte foi da diminuição das idas às urgências, com algumas a chegarem a atingir apenas 25% da procura média! Acontece que, por razões familiares, eu segui sempre com alguma atenção as notícias de Inglaterra sobre a evolução da pandemia. E nesta altura já eu tinha ouvido vários alertas de médicos ingleses sobre o perigo dos danos colaterais, em particular sobre outras doenças: por exemplo, que uma estimativa sobre o número de diagnósticos não efetuados, relativamente à média, e de tratamentos adiados de doenças oncológicas, fazia prever um aumento associado de mortalidade de várias dezenas de milhar.

Nestas circunstâncias, se esta referência a três estudos recentes e de uma só doença não é “cherry picking”… Como antes expliquei, a acusação de fazer “cherry picking”, não é em geral justa, porque fazê-lo é quase inevitável dada a profusão de informação. Só o refiro agora porque nesse artigo o autor refere-o duas vezes, antes deste parágrafo transcrito, acusando os Messias de o praticar. Como já disse: “fala o roto para o esfarrapado…”.

Mas a minha má impressão piorou, quando depois percebi que o autor era médico! Para agravar, de Medicina do Trabalho, especialidade em que a ideia de prevenção é central. E aqui estava ele a desvalorizar os alertas de prevenção dados por vários dos seus colegas, citando uns poucos e vagos estudos feitos noutros países… A minha má impressão sobre aquela página e o seu promotor, piorou bastante mais recentemente, mas por outras razões que ainda referirei no Epílogo.

17 – Das sequelas de má-evidência e da boa-evidência mandada às urtigas…

Muitos têm sido os estudos, testemunhos de especialistas e artigos na comunicação social falando sobre possíveis sequelas da doença. À partida nada a estranhar, já que é uma das preocupações relativamente a muitas doenças, sendo o AVC talvez o exemplo mais conhecido, e porque se sabe que num número significativo de pessoas a covid atinge formas bastantes graves, mesmo quando não mortais. No entanto, parte desses estudos e testemunhos, abriram caminho à ideia, essa já um pouco estranha, porque pouco intuitiva, que mesmo em casos de doença leve, ou até em assintomáticos, incluindo jovens e crianças em que os casos de doença grave e de mortalidade são, até ao presente, raríssimos e quase sempre associados a outros problemas graves de saúde já existentes, podendo mesmo dizer-se que são estatisticamente irrelevantes.

Naturalmente que as fragilidades, que tenho vindo a tentar explicar, dos estudos recentes ou de testemunhos como evidências científicas, se aplicam também neste caso. Com a agravante de que pela própria noção de sequela, o tempo de estudo tem de ser bastante alargado relativamente ao que é necessário a muitas outras investigações. Mas o que aqui é relevante para o tema da “evidência científica”, e que inspira o título desta secção, foi um fenómeno particular que constatei. Para melhor o tentar explicar quero fazer primeiro algumas considerações gerais sobre Ciência…

Uma das belezas maiores da Ciência é a forma como por vezes se tem chegado, na sua construção, ou “através dela” como se costuma dizer, a resultados e descobertas sobre o mundo, em particular formas programadas e fiáveis de sobre ele agirmos, e até a novas perspetivas sobre o que chamamos Realidade (incluindo aqui não só o que chamamos realidade física, mas também a das formas e limites do nosso próprio pensamento) que são muito pouco intuitivos, ou até mesmo contra-intuitivos! Não estou a dizer apenas surpreendentes ou inesperados, por serem antes imprevisíveis ou inimagináveis, mas verdadeiramente contra-intuitivos, podendo até ferir a nossa intuição a ponto de termos dificuldade em os compreender, interpretar ou até aceitar. Um dos melhores e mais conhecidos exemplos é o da Mecânica Quântica, com a sua teoria e todos os resultados experimentais, sobre a “realidade física”, que ela permitiu explicar e por outro lado prever. Este lado contra-intuivo na Mecânica Quântica e do que ela revelou sobre a constituição e comportamento daquilo a que chamamos a realidade física, é tão forte que gerou desde há muito um intenso debate entre os físicos (são famosos os que opuseram Einstein e Bohr) sobre as suas possíveis interpretações, não se tendo chegado até hoje a nenhum consenso absoluto sobre todos os aspetos desses debates. Como vemos, a Ciência não é só uma questão de opinião ao nível corriqueiro dos revisores de um artigo ou livro científicos, sujeitos às falhas e erros humanos que não abrem exceção para o rigor do pensamento científico (não esquecendo que para lá da verificação da correção científica dos resultados, a avaliação pelos revisores, ou corpo editorial, do interesse em publicar ou não aquele artigo ou livro, é iminentemente subjetiva). É uma questão de opinião também ao nível das mais sofisticadas, confirmadas e úteis teorias científicas…

No entanto, apesar da ausência de consenso sobre as suas interpretações, aquela teoria tem funcionado de forma extremamente fiável e com tantas aplicações ao nosso mundo tecnológico, que sem ela este não existiria como o hoje o conhecemos.

Vem a propósito, e apenas como curiosidade aqui, referir outra das belezas mais misteriosas da Ciência, um ingrediente central na sua construção e que, na minha opinião, nenhuma corrente, ou teoria, de Filosofia da Ciência (e em particular da Matemática) pode evitar, mais tarde ou mais cedo, ter em consideração. Desde há muito, mesmo antes da Antiguidade Clássica e dos conhecidos sucessos de sistematização da matemática grega (os Elementos de Euclides são geralmente reconhecidos como marcando o início do método hipotético-dedutivo), que a Ciência usa representações abstratas da realidade e das nossas perceções e interações com ela, através de linguagens simbólicas, na sua maioria a linguagem matemática (mas não só, por exemplo, a notação e fórmulas químicas) com formas próprias de cálculo, no sentido geral de regras de transformação e interpretação desses símbolos. Com o tempo, mais do que uma linguagem descritiva e cálculo matemático básico de apoio a um conhecimento acumulado, essencialmente empírico e artesanal, a construção da Ciência passou a fazer-se em grande medida e mais tarde de forma essencial a nível da própria linguagem matemática e simbólica. Hoje em dia, mesmo nas ciências experimentais, a parte de simulação computacional em modelos é em muitos casos imprescindível. O belo mistério central da Ciência, é como nos tem sido possível, através dessas representações abstratas e simbólicas da realidade e do que a esse nível descobrimos, em revelações e previsões fornecidas pelos cálculos das suas linguagens, atuar sobre a própria realidade de forma tão eficaz e fiável. É o mistério que por vezes é referido como “The Unreasonable Effectiveness of Mathematics…” (“…in the Natural Sciences”, título de um artigo de 1960 do físico Eugene Wigner).

Uma eficácia que por vezes ultrapassa, como na Mecânica Quântica desacordos, ou falta de consenso, a nível dos próprios fundamentos e sua interpretação. Também na Matemática isso acontece… O que poderá surpreender alguns, que terão da Matemática uma ideia de algo absolutamente rigoroso e lógico, que decorre sem falhas e de forma necessária de regras e princípios básicos indiscutíveis. E inquestionáveis de tão evidentes. E cujos problemas e dúvidas resultam dos níveis de complexidade atingidos nos desenvolvimentos matemáticos e não dos seus fundamentos… Como prémio para os leitores persistentes, darei um exemplo, mesmo no final (em apêndice, após o Epílogo) de um resultado matemático muito contra-intuitivo e de como ele pode suscitar este tipo de falta de consenso mesmo a nível dos fundamentos.

O que devo salientar é que embora os resultados ou descobertas científicas contra-intuitivos sejam um dos maiores fascínios da Ciência, e uma das suas principais belezas, eles não aparecem por procura deliberada dos cientistas. Podem até aparecer por uma súbita eureka inspiradora de um cientista, ou grupo deles, mas apenas como o final de um processo acumulado de pesquisa em que as intuições existentes, as naturais à nossa forma de pensar e as dadas pelo conhecimento específico e prévio do cientista, foram sendo confrontadas com possibilidades e hipóteses pouco naturais. No dia-a-dia os cientistas seguem as suas intuições “estabelecidas”; as naturais, resultantes de todo o seu desenvolvimento como ser pensante, e, em fusão com estas, as mais específicas resultantes do seu conhecimento especializado.

O que tem isto a ver com a questão das sequelas? Como disse antes, a ideia de possíveis sequelas da contaminação pelo vírus, mesmo em doentes ligeiros ou até assintomáticos, incluindo jovens e até crianças, é contra-intuitivo. É contrária às ideias e experiência acumulada que temos sobre doenças e sequelas. Quando digo “que temos” refiro-me a nós leigos, neste conhecimento muito vago e superficial que temos sobre questões de saúde. Mas, apesar disso, ouvimos testemunhos de especialistas, de médicos, falarem seriamente da possibilidade de sequelas, a longo prazo. As mais faladas (pelo menos aquelas de que melhor me recordo) seriam sequelas neurológicas e cardiovasculares. Deixando de lado a possibilidade de falta de seriedade ou má-fé dos especialistas, a única explicação aceitável é o dessas afirmações, e a investigação que terão decidido fazer nesse sentido, serem ditadas pelas suas intuições como especialistas, em função do seu conhecimento anterior. Neste caso, relativamente a outras doenças de algum modo relacionadas com a covid, como gripes e pneumonias. E na verdade, uma pesquisa geral não necessariamente direcionada para revistas ou repositórios da especialidade (facilmente acessível, portanto, a qualquer pessoa com o Google à mão) mostra que estudos desse tipo existem há muitos anos e em grande quantidade: de sequelas neurológicas associadas a pneumonias, ou problemas cardíacos (enfartes e infecções) na sequência de gripes. Há até estudos de infecções cardíacas, com ocorrência de casos graves, relacionadas com má higiene oral uma vez que algumas bactérias podem migrar com relativa facilidade da boca para a zona do coração. Por exemplo, Filipe Froes, que é pneumologista (e pelo que soube, através de um seu colega em quem confio, muito competente) e que foi um dos médicos que falou publicamente das possíveis sequelas neurológicas (e de muitas outras coisas, é claro, que é um dos especialistas mais mediáticos) estuda esse assunto, com a sua equipa, há muitos anos.

O fenómeno estranho que eu constatei, é que nunca nos testemunhos, nas entrevistas ou artigos na comunicação social sobre este assunto eram referidos estes estudos já existentes e obviamente relacionados. Parece-me que o que seria natural, do ponto de vista da evidência científica, e da boa informação ao público, era referir o que já se conhecia e já apresentava a robustez que, repito, só verdadeiramente o tempo pode conceder. Seria uma forma de tornar mais plausível, aos olhos do leigo, a hipótese desses riscos existirem também em relação à nova doença, que é do mesmo tipo… E poderiam até dar às pessoas uma noção melhor da dimensão desses riscos, informando dos resultados dos estudos conhecidos. Por exemplo, Filipe Froes poderia ter-nos dito, o que conhece, a que conclusões chegaram, em particular quais as estatísticas que obtiveram, os níveis de gravidade dessas sequelas neurológicas e de recuperação, a relação com os níveis de gravidade das pneumonias, se há também casos de sequelas por pneumonias leves e qual a incidência, a distribuição por grupos etários, etc.

Estranhamente deu-se este fenómeno: o que poderia ser verdadeira evidência científica, sem as fragilidades que afetam os estudos e as especulações fresquinhas, foi mandada às urtigas… Estranhamente do ponto de vista da racionalidade científica e da boa e séria pedagogia na sua divulgação pública. Mas natural e eficiente do ponto de vista da campanha mediática que sempre tentou passar a ideia de que este vírus era único, com malignidades únicas, nunca antes vistas… Até a poder deixar o que parecem ser (para já e à falta da tal informação relacionada, nunca fornecida) improváveis sequelas!

18 – Um exercício para a pedagogia do risco

Certamente por ser de matemática, de todos os efeitos nefastos na construção da visão predominante o que mais me aflige tem sido, repetindo-me, o do embrutecimento da nossa já naturalmente fraca intuição estatística e probabilística e da noção associada de risco. Embrutecimento provocado pela exploração emocional da crise, com a estratégia de exacerbação dos receios – a tal espinha dorsal da propaganda da visão predominante.

Para demonstrar de forma um pouco mais concreta como essa distorção da nossa noção de risco funciona, faço agora um convite para um desafio experimental, a partir da referência aos exemplos que dei nas secções 6, 7 e 8: uma conversa com a minha médica, um artigo do Guardian sobre um estudo de um problema de inflamação em crianças contaminadas pelo vírus, no UK, com uma incidência de 1 em 5000, e a bula de um meu medicamento e uns números da incidência de efeitos secundários.

Estes níveis de incidência parecem, intuitivamente, altos ou baixos? Por exemplo, aqueles 1/5000: se eu fosse pai de uma criança pequena deveria ficar ou não preocupado, apesar da declaração tranquilizadora no final do artigo? Qual a minha intuição? Afinal 5000 parece um número pequeno, o número de pessoas que cabem num pequeno pavilhão gimnodesportivo…

O desafio é o seguinte: pesquisem números de incidência para alguns problemas de saúde em crianças. Não as chamadas doenças raras, o nome não é por acaso, mas problemas mais comuns como distúrbios do espectro autista, síndrome de Down, vários tipos de malformações à nascença, cranianas, lábio leporino, etc. cegueira parcial ou total à nascença, surdez e perda de audição em crianças, etc. Talvez fiquem surpreendidos, como eu, por serem números, usualmente em permilagens, muito menores (incidência maior) do que suporiam. E depois pensem no que aconteceria se esses números andassem todos os dias a ser falados em peças de jornal e televisão com testemunhos emocionais e dramáticos de pais ou de médicos… Certamente que teríamos um problema demográfico muito maior do que o atual, com muitos jovens a perder a vontade, ficarem até com medo, de ser pais. Façam esse exercício…

Já agora, para reforçar, pesquisem também a incidência das perdas de gravidez depois das 20 semanas. Por exemplo, no Reino Unido, os “abortos tardios” (late miscarriages) são os que ocorrem entre as 13 e as 20 semanas. Os que ocorrem depois das 20 semanas (stilldeaths) já não entram nas estatísticas dos abortos, porque a sua ocorrência é muito menor comparativamente. Mas, ainda assim, vejam a incidência que é com certeza bem superior ao que possam pensar (no meu caso, foi). E depois imaginem o que seria, acrescentar ainda aos testemunhos dramáticos, o de algum obstetra muito mediático a dizer-nos, em entrevista, ou artigo de jornal “Não é bonito ver uma mulher perder a sua criança às 28 semanas! Acreditem!”…

No entanto, não vivemos alarmados com esses números. E com razão, porque em grande medida aqueles problemas são tratáveis e em muitos casos resolvidos pela medicina. Ou, não sendo resolúveis, ou totalmente resolúveis, não impedem em geral uma vida com qualidade, ainda que diferente.

Para finalizar, e em jeito de atualização: olhando para os números de incidência destes riscos tão presentes (têm de fazer o exercício!) mas com que vamos vivendo sem grandes alarmes, vejam como é absolutamente ridícula a preocupação criada em torno dos casos de trombo-embolismo associados à vacina da Astrazeneca! Como referi, num post que fiz no Facebook, 80 casos em 25 milhões de vacinados (eram os números à data), correspondem muito aproximadamente à probabilidade de alguém que joga em todos os sorteios do Euromilhões (dois por semana) 10€ (quatro apostas) ganhar uma vez no curto período de um ano!

Referências:

[1] https://lucbeaulieu.com/2015/11/19/how-many-citations-are-actually-a-lot-of-citations/

[2] https://onlinelibrary.wiley.com/doi/10.1111/bjh.16905?fbclid=IwAR21PSaj8dBVYd0gJ4pkwfgo5FafWWQlrykB4mWWXYYcrYu–4xoagM39ec#.X0OqyrDmJ0Y.facebook

[3] https://www.jpeds.com/article/S0022-3476(20)31023-4/fulltext

Epílogo

Das oportunidades perdidas…

Nunca a atenção das pessoas terá sido tão persistente e intensamente dirigida e focada (em todo o tipo de media) para questões da Ciência, como durante este último ano de pandemia. Até com alguns aspetos verdadeiramente cómicos: como referi no ponto 12, nunca tantos artigos e estudos científicos terão sido “vistos” (não verdadeiramente “lidos”, como expliquei) e partilhados por tanta gente, não especialista, criando assim um estranho epifenómeno de “falsa citação” em rede social, a contrastar com a predominante irrelevância (interna) na chamada “montanha de papel”.

Foi uma oportunidade, talvez única e irrepetível, para transmitir a ideia, tão bem descrita nessa frase que durante muito tempo esteve na página de abertura da página da minha faculdade, a FCUP, que

“A Ciência de Hoje é Mais do que a Tecnologia de Amanhã”.

Diariamente temos ouvido falar, de modo obsessivo, nos noticiários e programas dedicados à pandemia, de virologia, epidemiologia, medicina em geral, medicamentos e futuras vacinas, genética, estatísticas, gráficos e números, modelos matemáticos, etc. Vimos, sem descanso, imagens de hospitais e de UCIs, com toda aquela impressionante aparelhagem, ventiladores, ECMOs…

A medicina será das áreas de saber em que se verifica maior convergência e cooperação de saberes de (tantas) áreas distintas e em que será mais fácil fazer essa pedagogia, tanto pela diversidade existente nessa convergência e cooperação como pela familiaridade das pessoas com os exemplos que se escolham e o reconhecimento da sua utilidade. Facilmente escreveria outra publicação mais extensa do que esta, com exemplos desses. Lembremos simplesmente que a maior parte das criações, ou descobertas científicas envolvidas, em particular as impressionantes maquinarias das UCIs, ou para diagnóstico, das variadas formas de imagiologia, de hemodiálise, etc. não são da autoria de médicos intensivistas (nem de outros)… Na sua esmagadora maioria (mesmo esmagadora) são fruto do trabalho de gente sentada “confortavelmente” atrás de uma secretária ou de uma banca de laboratório. Trabalho cuja aplicação e possível utilidade nem sempre foi logo visível, ou mesmo previsível – às vezes visto até como meras especulações ociosas – mas que mais tarde combinado com outros saberes descobriu a sua “vocação” prática, por vezes de formas surpreendentes. É o sentido da citada frase da página da FCUP e que pode ser ilustrada por imensos exemplos da história da ciência e da tecnologia. Mas mais importante é o diálogo entre disciplinas diferentes que é necessário para aquela convergência. Disciplinas com linguagens, metodologias, formas de pensar diferentes que têm de se sintonizar através desse diálogo. Que só pode existir com abertura.

Mas infelizmente o que se tem visto está nos antípodas disto, deste espírito de abertura e diálogo entre saberes e visões diferentes, indispensável ao progresso científico e, sobretudo, ao tecnológico (onde também entram saberes das áreas de Gestão e Economia indispensáveis para a produção industrial e distribuição). Nesta pandemia, nem nas áreas mais diretamente envolvidas no problema, ligadas à medicina, se viu esse espírito de diálogo e abertura entre diferentes opiniões. Pelo contrário, foi criada e alimentada uma atitude maniqueísta, entre uma visão ou narrativa predominante que foi sendo construída e sedimentada – veiculada, mais do que tudo, pelos órgãos de comunicação social tendo como característica central um constante empolar dos medos, à partida naturais face ao que era uma ameaça desconhecida, através do sensacionalismo alarmista – e as ideias ou atitudes dela divergentes. Muitas práticas noticiosas foram usadas para esse empolar dos medos criando uma associada distorção da noção do risco: desde os testemunhos dramáticos de quem “está no terreno”, e por isso “é que sabe” – e que por mais valor humano que possam ter, como testemunhos, não têm por outro lado, quase nunca, e só por si, qualquer relevância estatística – até ao mau uso das “evidências científicas” da literatura e à triste manipulação de números e “estatísticas” apresentados quase sempre de formas enviesadas e sem qualquer enquadramento.

Uma visão predominante, defendida de forma dogmática contra as visões alternativas, ou até simples dúvidas e interrogações, logo tratadas como perigosas dissidências e metidas todas no mesmo saco simplista do chamado “negacionismo”.

Não se vislumbra com que critério foram escolhidos os especialistas “oficiais” da visão predominante, o que os tornou especiais, os “His Master’s Voice”, em comparação com outros que com igual ou melhor currículo e experiência foram colocados de lado e, em muitos casos, vilipendiados no processo maniqueísta.

Não se percebe que fio condutor de natureza científica poderá ter orientado esta seleção dos escolhidos. Tanto mais quanto, face à incerteza de um problema novo, desconhecido, as próprias opiniões dos “escolhidos”, assim como das autoridades, sobre como atuar, foram mudando várias vezes ao longo do tempo, por vezes em clara contradição com declarações anteriores, em giros intelectuais de 180º, alguns registados em engraçadas montagens de vídeos. Foi “navegação à vista”, como não poderia deixar de ser, nas circunstâncias. E é natural e desejável, nem poderia ser de outro modo, que para essa navegação, e na parte do aconselhamento científico, tenha sido escolhido quem tem mais conhecimentos das áreas científicas relevantes, ainda que a novidade da situação não lhes permita, à partida, pensar com grandes certezas e garantias científicas.

Para navegar à vista, estando os moderníssimos aparelhos de navegação momentaneamente inacessíveis ou meio estragados, quer-se a experiência e saber de um marinheiro, não de alguém que tem medo da água, nunca pisou um barco e nem nadar consegue. Mas esta situação de desconhecido seria, do ponto de vista científico, do que é o verdadeiro espírito da ciência como grande construção cooperativa – se não sempre na criação, que muito deve a rasgos individuais, sempre na aceitação, afirmação e integração posterior dessas criações – mais uma razão para ouvir em confronto e diálogo aberto e cooperante as várias opiniões divergentes. Para a criação da visão e narrativa predominantes e a concomitante seleção dos seus especialistas oficiais, os escolhidos, a quem foi dado um palco mediático privilegiado comparativamente ao dos dissidentes, os “negacionistas”, os proscritos, poderá ter havido algum fio condutor de natureza política, ou mediática, ou de obscuras influências, ou interesses conspirativos, ou uma amálgama destes: é trabalho para algumas áreas do saber – análise política, sociológica, etc. – investigarem.

Não houve foi nenhum fio condutor de natureza científica, envolvendo as áreas relevantes para o problema, ao contrário do que possa parecer pelo destaque mediático desses tais cientistas “escolhidos”. Não existiu nada próximo de algum “consenso científico”, mesmo mínimo, envolvendo aquelas áreas relevantes ligadas à saúde, na base da criação da visão predominante. E, mais grave, uma vez que qualquer estratégia de acção remetia para o comportamento das pessoas e dele dependeria para o seu sucesso (a menos que fosse instalado um estado de sítio fortemente policiado e repressivo) foram deixadas de fora áreas de saber essenciais para essa ponderação, como a sociologia e a psicologia.

Consensos sobre estratégias a seguir houve certamente, mas de outra natureza, não científicos, mas sobretudo políticos…

Em conformidade com a ausência de critério científico para a formação da visão predominante, o movimento maniqueísta em sua defesa não tem atuado contra os hereges “negacionistas” por argumentação científica (excluídos alguns verdadeiros, mas muito ocasionais, diálogos e debate, apenas exceções que justificam a regra) mas sim por puras técnicas de propaganda e agitação dos exércitos de apoiantes, ainda que sempre em nome da ciência. Ataques pessoais, referências a aspetos da vida do visado, profissional ou até privada, que nada têm a ver com a opinião particular por ele expressa e que querem atacar, julgamentos de carácter, tentativas de desvalorização curricular, tudo isso acompanhado frequentemente de insultos e por vezes, em processos de verdadeiro assédio nas redes sociais, com apelos à exclusão e à imposição de vários tipos de proibição da vítima, etc. Extremismos de condenação de tipo ético – apenas por causa de opiniões ou simples dúvidas de carácter científico, numa situação em que o que é inegável é existir ainda uma prevalência das dúvidas sobre as poucas certezas que, entretanto, pudemos adquirir – que fazem lembrar o pior de certos fanatismos religiosos em nome de preceitos sagrados.

Exemplos são imensos, mas fica só um que escolho por ser neutro, já que não sinto qualquer simpatia ou antipatia pela pessoa: o Dr. Fernando Nobre. Como é possível ouvir-se gente dizer que sempre o admiraram toda a vida, mas que perdiam agora toda a consideração, e de modo definitivo, só porque ele exprimiu uma opinião divergente sobre este assunto? “Irresponsável” gritavam! Como se a verdade por ele ofendida nessa sua divergência fosse palavra divina. E não faltaram os julgamentos de carácter, é claro: a suposta vaidade, o nepotismo familiar na sua instituição, etc. Perder a consideração total e definitiva por alguém que descobrimos, surpreendidos, que falhou em relação a princípios éticos hoje em dia indiscutíveis – sei lá, ser um pedófilo –, entende-se, mas por uma divergência de opinião sobre questões de ciência ainda que muito estúpida?

A aberração deste tipo de atitude sectária, extremista, feita em nome da defesa da Ciência contra “negacionistas”, mas ela mesmo totalmente anticientífica em espírito e princípios, parece ter um dos seus expoentes no tal blog (sobre “ciência” e “evidência”) que já referi anteriormente, no ponto 12. Para além do habitual processo de assédio feito com simples “prints” de publicações da vítima escolhida a que colam slogans de propaganda e agitação, seguindo a cansativa vulgata da retórica anti-negacionista, sem qualquer esboço de ideia para debate, nada a que se possa chamar argumentação científica, chegam ainda a fazer o apelo explícito à censura e exclusão e à denúncia em massa pelos seus fiéis seguidores para que o Facebook (pelo simples automatismo dos seus cegos algoritmos) castigue e suspenda o inimigo! Com o descarado apelo pelo seu promotor, vangloriando-se até, sem vergonha, dos feitos anteriores alcançados nessa ação de luta pela “ciência”. E pela “evidência” supõe-se… Que este blog tenha no seu nome “Ciência”, várias dezenas de milhares de seguidores (mais de 70.000) e o seu promotor tenha – apesar deste seu espírito mesquinho de perseguição e censura, totalmente nos antípodas do que é o espírito e a prática científicos – um razoável palco mediático com intervenções, artigos nos jornais, e convites para programas de televisão, é deprimente!

A justificação principal, que se ouve aos apoiantes de ações contra os “negacionistas”, até para este tipo de extremos de assédio de mau gosto e sem réstia de ética – onde a justificação toma então a discutível forma do “olho por olho, dente por dente” – é a necessidade de denunciar e lutar contra os efeitos nefastos da mensagem que eles, os negacionistas, passam e que será causa de comportamentos irresponsáveis e desrespeitadores das regras estabelecidas, ou pelo menos os potenciará, prejudicando assim o esforço coletivo …

É verdade que há negacionistas, os verdadeiros, assim sem aspas, muito ignorantes e anti-ciência. Isso é indiscutível! Já existiam, são um fenómeno em grande crescimento, preocupante, não foi a pandemia que os criou. Naturalmente, não iriam agora desaparecer… E a sua influência crescente deve ser contrariada, sem hesitação! Não só pelos perigos imediatos que acarreta – como no caso dos anti-vacinas – mas por princípio: toda a ignorância deve ser combatida, mesmo a inofensiva (Embora certas elites achem, sem o confessarem explicitamente, que a inofensiva deve ser acarinhada e deixada em paz, desinvestindo-se na cultura e na educação geral e universal e/ou afunilando-a de forma instrumental, apenas para servir, com a formação de obreiros cada vez mais incultos e especializados – incluindo na Academia – os estreitos mas lucrativos interesses dessas elites)

Agora, o problema é que o maniqueísmo, que se criou entre os defensores e militantes da visão predominante e “os outros”, mete tudo no mesmo saco – “os outros” – e os alvos do ódio e perseguição anti-negacionista, em particular os daquele blog de lamentável existência, são quase sempre “negacionistas” falsos, assim com aspas. São muitas vezes pessoas que nada têm de ignorantes, que mostram ser cultas e estar bem informadas, e que argumentando melhor ou pior, estando certos ou errados nas conclusões que tiram, com maior ou menor pertinência nas dúvidas que levantam, o fazem de forma sustentada, bem argumentada, e apoiados em dados confiáveis, muitos deles oficiais, ou em factos indesmentíveis. Mas falam do que não sabem, de especialidades que não dominam?! Direi algo sobre isso no final: sobre o grande logro que está por detrás dessa ideia sobre o “negacionista”, cujo pecado será, não sendo ele intelectualmente fraco e globalmente ignorante, o atrevimento de trespassar domínios em que não é especialista encartado… Ou especialista “escolhido”.

O que me parece é que aquela justificação para a perseguição e o castigo, até com achincalhamento dos “negacionistas”, a dos terríveis danos que supostamente têm causado, é mais um pretexto do que uma sincera razão. Pretexto para fazer a propaganda e a agitação em favor da visão predominante e, associadamente – e será até essa a razão mais forte: a carne é fraca e certos egos inchados – a favor de interesses particulares na manutenção e promoção dos poleiros mediáticos desses cruzados anti-negacionistas. Digo “associadamente” porque é muito mais vantajoso, fácil e confortável seguir e defender a visão predominante do que dela divergir, sobretudo quando o que fala mais alto é um clima de emoções e receios descontrolados e não a pouca e fraca informação honesta, isenta e racional.

E não é uma verdadeira razão por dois motivos. O primeiro é a enorme desproporção de meios entre a força esmagadora da propaganda em que se construiu a visão predominante e a força da divulgação das visões divergentes. Nos órgãos de comunicação social nem se fala: as opiniões de “negacionistas”, publicadas em artigos na imprensa ou ouvidas em entrevistas e debates, são minoritárias e, sobretudo, quase totalmente ausentes dos principais noticiários televisivos e das parangonas de jornais e revistas!

Mas também nas redes sociais essa desproporção existe!

Basta comparar o número de seguidores das páginas e blogs de uns e de outros, e das reações médias às publicações nessas páginas. Façam-no, por exemplo, vendo a página já referida sobre “ciência” e “evidência” do médico Cerqueira, ou a do médico Cardona, e a de reconhecidos “negacionistas”, como André Dias e outros. E vejam quantos destes “negacionistas” têm tido as mesmas oportunidades de propaganda na comunicação social de que estes dois médicos têm desfrutado, o mesmo número de intervenções em artigos na impressa, de entrevistas, participações em programas na televisão, etc.

O segundo motivo, e principal assimetria entre as duas metades, é que é muito mais fácil criar em alguém um receio ou mesmo medo, até a um estado de alarme e pânico, espinha dorsal do que tem sido a estratégia de construção da narrativa predominante, do que o contrariar ou aplacar uma vez instalado. Qualquer pessoa que sofra ou tenha sofrido de alguma fobia sabe isso (haverá alguém que não?). Quando mesmo reconhecendo nós, racionalmente, que não há grande razão para a fobia – em particular por óbvias considerações estatísticas – ela se impõe até fisicamente, e por vezes com grande intensidade, para além da nossa vontade e controle. Sei do que falo: não me aproximo do parapeito de uma varanda alta! Mesmo que o parapeito me dê pelo peito, o que é raríssimo: acho-os sempre absurdamente baixos e inseguros. Tenho vertigens, uma horrível sensação física e mental. Mas também não suporto ficar de longe, como não tenho outro remédio, sentado numa sala e a ver alguém que me é próximo apoiado nesse parapeito: fico aflito, não descanso até não saírem dali. E não estou a pensar em crianças, mas em adultos também. É superior a mim, e, no entanto, sei bem que os acidentes de quedas de varandas são estatisticamente irrelevantes; ou a altura regulamentar dos parapeitos teria de ser maior, ou até as varandas proibidas…

É essa a nossa natureza: o melhor da nossa humanidade, o que torna a vida mais interessante e bela são muitas das nossas emoções e sentimentos, que prevalecem sobre a nossa racionalidade e a condicionam. Até na construção científica, em que certas sensações de equilíbrio, beleza e harmonia e acima de tudo inesperadas intuições, orientam muitas vezes essa racionalidade, de forma decisiva. Mas há o reverso da medalha, no grande jogo do equilíbrio universal de opostos: o de todas as sensações e sentimentos negativos que julgamos, talvez erradamente, que não deveriam existir, que não deveríamos ter de sofrer…

Este desequilíbrio entre a dificuldade do “trabalho psicológico” das duas tarefas – a da construção da visão predominante e a dos “negacionistas” que se lhe opõem – e a desproporção dos meios de que têm disposto são enormes. São tão grandes que esta obsessão de algumas campanhas anti-negacionistas, e seus dedicados cultores, acaba por ser uma confissão (inconsciente, claro) do falhanço da sua campanha. E sinal, talvez, de uma ingénua convicção de que é possível eliminar as transgressões de comportamentos na sociedade através de “campanhas de sensibilização”. Ou, neste caso, de medo… Parecem esquecer que todos os dias na nossa sociedade há transgressões, e algumas graves, que colocam também a saúde, e até a vida, de terceiros em risco, que não são ditadas nem acompanhadas por nenhuma “negação” pelo infrator da gravidade do seu comportamento ou das lógicas das razões para ter sido estabelecida a regra que ele assim quebrou (conduzir alcoolizado?). Podem replicar aqui que este, o da pandemia, é um caso em que a transgressão de uns poucos pode colocar em risco a saúde de muitos e até deitar todo o esforço a perder… Mesmo aceitando que isso é verdadeiro (eu não acredito que seja), será de perguntar então aos cruzados anti-negacionistas em que proporção entrou aí, na perigosa transgressão, a influência dos seus “negacionistas” de eleição. Quase apetece usar um dos argumentos prediletos do novo cientificismo que anda a reboque destas campanhas anti-negacionistas e perguntar-lhes se têm algum estudo que demonstre essa influência… Talvez começar os inquéritos e a amostra perguntando àqueles recentes “transgressores” que foram multados por comer sandes dentro do carro, ou umas gomas perto na máquina de venda, e outras coisas gravíssimas, se foram influenciados por André Dias ou Pedro Almeida Vieira ou Raquel Varela, etc. “Quem?!” Podem de novo replicar dizendo que esse tipo de influência não é direta, mas que se exerce por um processo tipo osmose, feito de disseminação das ideias através de muitas repetições pelas redes sociais e comunicação social. E dizem bem: para se dar uma verdadeira influência, que seja importante, que tenha dimensão social suficientemente relevante para nos preocupar, é sem dúvida verdade! É o caso de certas ideias negacionistas, sem aspas! Mas aqui, no caso destes anti-negacionistas e dos seus “negacionistas” de eleição, com aspas, há e sempre houve, desde o início da pandemia, essa enorme desproporção de meios para a construção das suas osmóticas influências.

São passados quase 40 anos desde que um dia, na livraria da Universidade de Warwick, comprei os meus dois primeiros livros de Filosofia da Ciência (Popper) e o primeiro de Filosofia da Matemática (à data, o único que existia como possível introdução, numa compilação de vários artigos clássicos, fundacionais). Quarenta anos de ininterrupto interesse e dedicação com incontáveis horas de leitura e estudo e com os últimos oito da minha vida profissional, até à minha aposentação, num nível de quase profissionalização (e muita matemática, sobretudo sobre Lógica e Fundamentos, continuei a aprender à boleia da filosofia da matemática) … Será por isso que sou especialmente sensível à imagem errada da Ciência que vejo ir sendo passada, para o público em geral, nas discussões desta crise, com a irritação acrescida de o ver sendo feito em nome dessa mesma Ciência, da sua suposta defesa. É penoso ver o discurso e os “argumentos” de muitos desses auto-intitulados defensores da Ciência, como os fiéis seguidores de alguns sacerdotes anti-negacionistas, contra os hereges “negacionistas”.

“A Ciência é sobre factos e factos não se discutem! A Ciência não é uma questão de opinião!”

Ouve-se muito frequentemente, com ligeiras variações, mas sempre em tom muito convicto, esta barbaridade! Para logo depois citarem, ou exigirem a terceiros, um estudo. Com “peer review”, naturalmente! Isto até poderia ser cómico, não fosse pela enorme ignorância e superficialidade da visão da ciência que assim revelam ter, a par da sua ingénua convicção de defensores.

De ciência sabem pouco, isso exige tempo e dedicação, mas sabem de cor as manhas do “livro vermelho” do argumentário e da propaganda anti-negacionista, que se aprende facilmente pelas caixas de comentários nas redes sociais.

“Sabes muito de ciência!”, “Outro especialista em epidemiologia!”, “Outro que acha que ser contra-corrente o faz sentir mais inteligente”, “Saiu-lhe o curso de virologia na farinha Amparo”, “São os tudólogos”, etc.

Além deste tipo de “argumento”, que remete para a tal ideia da exclusividade de “autoridade da fala” ser dos especialistas (o que ainda analisarei), em especial dos que “estão no terreno”, constata-se uma grande dificuldade na leitura, na compreensão de textos, sobretudo se o texto que estão a criticar for um pouco mais longo e elaborado, e uma enorme incapacidade em dominar a lógica mais básica do raciocínio (o que se prende àquela dificuldade de leitura e interpretação de textos: as raízes lógicas do raciocínio abstrato estão já na estrutura base da linguagem natural e da associada capacidade de leitura).

Se eu escrever algo tão simples como “É estranho que a vaga de frio que se fez sentir com início no Natal, de duração bastante longa, quase um mês, não seja posta como parte da equação. Que se veja tanta resistência em considerar a sua possível importância no excesso de mortalidade” é muito provável, mesmo muito, que me respondam com coisas do tipo “Está a dizer que a culpa foi do frio é? Que não foi o abrandamento das restrições no Natal?”

Esta gente, que parece só conseguir pensar em termos de falsas polaridades, pensa que todos os outros também estruturam o seu pensamento e os seus textos na base de falaciosas disjunções exclusivas deste tipo, mesmo quando um dos termos da disjunção que referem está claramente omisso no texto. E sem se aperceberem sequer, coitados, estão a fazer eles mesmos o que tanto condenam: meter-se na pele de especialista de parapsicologia (coisa aliás pouco científica) que adivinha o pensamento oculto do outro. É impressionante o quanto se vê gente a “responder a alhos com bugalhos”, a elaborar empenhadamente considerações e defesas do que nem é sequer referido! Parecem incapazes de perceber o sentido lógico de uma certa conjunção de fatores ter uma certa consequência: que nem sempre algum dos fatores da conjunção poderá só por si determinar essa consequência, só a conjunção de todos deles, mas que também não é impossível, em certas situações, que a determine (não estou a falar da implicação, ou consequência, da lógica matemática que não é adequada para modelar muitas situações da vida real).

E não faltará certamente o “argumento” que consiste na absurda inversão do ónus da prova e do que é a lógica e o sentido da construção da evidência científica – em relação com as intuições dadas pelo conhecimento já adquirido, como expliquei no ponto XXX. Perguntar-me-ão: “Onde está o estudo que mostra que o coronavírus e a doença respiratória associada, tem maior transmissibilidade e maior virulência numa vaga de frio?!” Caricaturando, mas fiel à “lógica” com que esta gente vê o trabalho da ciência, se eu repetir o que parece ser o maior consenso do pensamento humano, “A verdade é que a morte é certa! Todos morremos!” poderão pedir-me o estudo científico que mostre que tal é verdade… Tal como me poderão pedir o estudo científico que prove que a Terra não parará de girar e que o Sol amanhã nascerá!

Esta indigência de “argumentação”, e a falta de ética nas formas de assédio, que fazem da leitura de certos artigos ou entrevistas ou caixas de comentários um verdadeiro cilício intelectual vejo-a também no “outro lado”, o das visões divergentes e seus apoiantes? Claro que sim, mas dada a desproporção de dimensão e de meios que noto entre “as duas metades” (na divisão maniqueísta, que não é minha) preocupam-me muito mais as ideias erradas que são passadas pela campanha anti-negacionista. É que para cada disparate ignorante do campo “negacionista” (os negacionistas sem aspas não andam pela minha “bolha”) vejo três ou quatro análogos do campo dos anti-negacionistas militantes, com a agravante destes se apresentarem como defensores e arautos da Ciência! Ciência que, nunca se esqueça, clamam eles, é… “Sobre factos e factos não se discutem! A Ciência não é uma questão de opinião!”

Para não ser acusado do logro que mais me preocupa: sim, isto é um testemunho pessoal, é a perceção que tenho a partir da minha “bolha” e não fiz nenhum estudo estatístico sobre o que acabei de dizer. Mas o texto é meu, a catarse é minha, assumidamente… Na procura de algum alívio para estes cilícios intelectuais que a globalização das redes sociais e a miséria da sua influência no estilo e objetivos do jornalismo tradicional nos trouxeram.

“Certamente por ser de matemática, de todos os efeitos nefastos na construção da visão predominante o que mais me aflige tem sido, repetindo-me, o do embrutecimento da nossa já naturalmente fraca intuição estatística e probabilística e da noção associada de risco. Embrutecimento provocado pela exploração emocional da crise, com a estratégia de exacerbação dos receios – a tal espinha dorsal da propaganda da visão predominante.”

Para demonstrar de forma um pouco mais concreta como essa distorção da nossa noção de risco funciona, reitero o convite que fiz na secção 18, a última, (de que o parágrafo anterior é uma transcrição), para um desafio experimental – a partir da referência aos exemplos que dei nas secções 6, 7 e 8: uma conversa com a minha médica, um artigo do Guardian sobre um estudo de um problema de inflamação em crianças contaminadas pelo vírus, no UK, com uma incidência de 1 em 5000, e a bula de um meu medicamento e uns números da incidência de efeitos secundários

O meu misto de desalento e irritação com o tratamento, uso e apresentação de assuntos da Matemática durante esta crise, para além daquele aspeto de “embrutecimento” que acabei de referir, culminou agora, nos dois primeiros meses do ano, com as previsões dos modelos matemáticos feitas por quem aconselhava as famosas reuniões no INFARMED e por outros matemáticos que têm também aparecido publicamente na comunicação social. Felizmente as previsões falharam de forma clara! Como se costuma dizer, falharam redonda e estrondosamente! Principalmente, e isso é mesmo o importante, porque significa que a inversão se deu bem antes do que o previsto, e a descida de forma mais rápida, com números de infeção e mortalidade bem inferiores aos que, ainda no final de Janeiro, já seguramente depois da inversão (seja a sua data mais cedo ou mais tarde, como é assunto de discussão), eram previstos por esses especialistas para Fevereiro… O desalento não tem a ver com o falhanço em si! Que os modelos matemáticos de fenómenos com dinâmica muito complexa falhem nas previsões não é nada de especial. É natural, dada a complexidade envolvida: a informação perde-se facilmente, sendo muito sensível a pequenas variações ou oscilações invisíveis, provocadas por fatores não incorporáveis nos pressupostos (por desconhecimento mesmo de como os modelar ou por opção do modelador para que o modelo fique mais robusto, menos dependente do que não se controla nem se mede com razoável precisão). Estamos mais que habituados às falhas com as previsões meteorológicas (Não é por acaso que o desenvolvimento do estudo dos comportamentos caóticos na matemática dos sistemas dinâmicos esteve ligado na sua origem à meteorologia). Não deixamos de as usar, apesar de falharem, e reconhecendo que vêm melhorando ao longo dos anos. Damos-lhes uma atenção e confiança moderadas e um uso cauteloso… E também sabemos que não há outra forma de fazer previsões nesse domínio que não seja através de simulação por um modelo, matemático e computacional: não podemos fazer simulação experimental!

O mau foi, numa primeira fase, a excessiva assertividade com que essas previsões foram sendo apresentadas publicamente! E a evolução de uma pandemia dependendo tanto de detalhes imprevisíveis do comportamento da sociedade é uma dinâmica muitíssimo complexa. Para além de, no caso particular das previsões deste período, os modelos não terem incorporado (tanto quanto se sabe) o fator da vaga de frio que se verificou e que pode ter influenciado de forma importante essa dinâmica… É verdade que sem essa assertividade seria difícil justificar os conselhos que esses matemáticos mediáticos acharam por bem ir dando sobre questões de confinamento, que pediam mais rigoroso, em particular sobre a necessidade do fecho das escolas. Mas sacrificar o espírito e rigor científicos à conveniência de justificações da sua ação política – para a qual ser especialista de uma área científica não dá qualquer tipo de qualificação, por maior que seja o pedestal científico do especialista na sua área – não é atitude avisada. E digo rigor, sim, porque dele faz parte a atenção ao que serão os limites do nosso conhecimento e o seu reconhecimento e enunciado…

Mas devemos reconhecer que de certa forma foram coerentes com essa assertividade exagerada quando, numa segunda fase, não souberam, nem sabem ainda, reconhecer o falhanço das previsões que fizeram.

Pior ainda foi a forma como reagiram às referências que naturalmente surgiram e foram sendo feitas a essas falhas das suas previsões, desviando a atenção para a discussão técnica de detalhes e com a arrogância intelectual de sugerir que o problema era a ignorância de algumas pessoas sobre o significado de alguns conceitos matemáticos que não lhes permitiria compreender a dinâmica dos números… Então quando este tipo de “argumentação” tem a forma de ataque ad hominem, como aconteceu com Carlos Antunes em relação a Raquel Varela, é ainda mais lamentável. Esperar-se-ia que alguém que escolhe ou aceita ter tanto protagonismo mediático, como aconteceu com estes matemáticos, sobre um assunto desta relevância social e reivindicando a importância das suas opiniões científicas para a decisão de medidas políticas que afetam as pessoas que os ouvem, se sentisse com a obrigação de um mínimo de pedagogia em relação a esse público. Público que maioritariamente não sabe o que é uma “segunda derivada” (o que Carlos Antunes acusou Raquel Varela de não saber, e que já se tornou uma piada nas redes sociais, entre os críticos dele). Ainda mais se são professores de algumas Faculdades… Mas não: viu-se uma postura de autoridade e sobranceria. Ora, um mínimo de pedagogia, e com modéstia, impunha-se já que na perceção pública o falhanço das previsões daqueles matemáticos parece claríssimo quando olhamos para outros dados, como, por exemplo no caso dos contágios, a curva calculada pelo INSA, uma vez que a análise e compreensão desses dados não requer conhecimentos matemáticos por-aí-além, sendo acessível a muita gente. Em vez de termos uma explicação, estamos ainda, à data em que escrevo, perante um quid pro quo académico entre os especialistas do tratamento de dados estatísticos e matemáticos, que não se entendem sobre alguns dos pressupostos mais básicos: como integrar os vários períodos temporais entre contágio, sintomas e testagem. Isto após um ano de bombardeamento diário de números, estatísticas, estimativas, previsões, explicações e “achatamento” de curvas, pontos de inflexão, picos e planaltos, crescimento exponencial, etc… Sem esquecer a segunda derivada, naturalmente!

Tudo isto num exercício de elasticidade a tentar puxar o cálculo do pico dos contágios mais para um lado ou outro da data de fecho das escolas, para tentar provar como esse fecho era necessário… Uma ginástica que afinal parece fútil. Mesmo que o pico dos contágios tenha acontecido, como parece que foi o caso, antes dessa data, e, portanto, o fecho das escolas não foi o fator decisivo para a inversão, é possível argumentar, como alguns já têm feito, que o fecho das escolas contribuiu de alguma forma para um decrescimento mais rápido e por isso se justificou… Que teria, por exemplo, compensado o possível efeito contrário devido às eleições no dia 24. Não sei se essas argumentações são convincentes, não tenho uma opinião definitiva, mas fazem pelo menos algum sentido. Porquê e para quê toda esta resistência em admitir francamente o problema da falha de previsões?!

Explicações para aquele quid pro quo, não são dadas, pelo menos de forma pública e franca. Assistimos sim ao engulho académico de vermos agora especialistas, neste caso alguns matemáticos, a acusar os seus colegas de outras instituições científicas, o INSA, de não saberem fazer contas. Em modo discreto, estilo conversa de “common room” é verdade, mas ainda assim de forma pública nas redes sociais… É ridículo. E um descrédito académico.

Ainda mais com a colaboração nesse sentido de António Costa que aproveitou para uma pequena facada nas costas aos cientistas colaboradores (e/ou cooperantes) ao pedir-lhes mais “consenso”, coincidindo com o anúncio do fim da colaboração de Carmo Gomes nas reuniões no INFARMED, e ao dizer aos jornalistas que perante os dados conhecidos não poderia garantir que o fecho das escolas tivesse sido decisivo para a inversão… (Reforçou-me a convicção, que já exprimi num outro texto, de que o aconselhamento científico do governo deveria ter sido feito por uma comissão científica formalmente constituída, com critérios de escolha claros e públicos e, pelo menos no caso da matemática, com duas equipas a trabalhar de forma independente, que confrontassem posteriormente as metodologias e resultados obtidos)

A imagem da Matemática, dos matemáticos e da Academia sai prejudicada, e vemos agora pessoas, como Santana Castilho, que têm audiências significativas (ele escreve regularmente no jornal Público) referirem estes usos da matemática associando-os à Astrologia ou à taróloga Maya. Talvez sejam associações justas e com algum sentido, ainda que só circunstancial, no caso dos matemáticos: que têm mostrado partilhar características comuns com o consumidor da astrologia, parecendo acreditar com grande fé, dada a sua assertividade, que o futuro da realidade vai ser mesmo o das suas previsões… No caso da Matemática propriamente dita, é que não fazem sentido nenhum!

Afinal a verificação de que previsões dos “modelos” falharam tão claramente é um assunto interno à matemática, seja ou não feita por matemáticos encartados. Não foi a Maya nem algum horóscopo que o revelaram. Verifica-se através de mais matemática precisamente, de outros modelos, ainda que muito mais simples e acessíveis a um número vasto de pessoas (incluindo grande parte dos ignorantes que desconhecem a segunda derivada). Usamos habitualmente a expressão “modelo matemático” tendo em mente algo com alguma sofisticação e trabalhado por especialistas, mas na verdade uma recolha estatística colocada numa simples curva de contágios, ou gráfico de barras, como a que referi atrás, feita pelo INSA (que Luís Aguiar-Conraria usou num seu artigo no Expresso, que foi depois partilhado por ele e por outros, eu incluído, e visto portanto por imensa gente) é um modelo matemático no sentido geral: uma representação (abstrata) da realidade em termos matemáticos (com números, gráficos, etc.). Mais simplesmente: é Matemática!

[E note-se que não há nada de anómalo, de extraordinário, no facto de um processo matemático mais sofisticado ser infirmado por constatações matemáticas mais simples, como neste caso acontece. Quem já fez investigação matemática – e pode ser num sentido alargado: não só da verdadeira investigação, “de ponta”, visando resultados originais, mas também tentando resolver exercícios complicados, de um livro por exemplo – sabe que por vezes podemos andar horas, ou mesmo dias, com alguma ideia sofisticada na cabeça para obter um certo resultado, ruminando estratégias e resolvendo passos intermédios, para de repente descobrirmos com um contra-exemplo quase trivial que a sofisticada ideia afinal era uma estupidez e o resultado uma miragem! Excluindo os Mozarts da matemática, que também os há, mas tão raros como esse protótipo da genialidade fácil, meia divina, todos os outros matemáticos percebem isto…].

O que me traz ao ponto final deste Epílogo e desta empreitada: o logro que consiste em argumentar que os “negacionistas” trespassam áreas científicas das quais nada sabem e que deveriam ser deixadas, exclusivamente, aos respetivos especialistas, que seriam assim deixados na paz das alturas da sua autoridade, poupados às estúpidas críticas de ignorantes.

Não digo que esse trespasse não vá acontecendo, mas digo que o argumento que o usa é um logro porque na minha perceção (a partir da minha bolha, claro) acontece esporadicamente. O que vejo quase sempre é “negacionistas” a argumentar ou colocar dúvidas meramente em termos lógicos, apontando para contradições ou possíveis inconsistências: que eles detetam (bem ou mal, isso é outra questão) no próprio conteúdo da ideia ou afirmação que estão a contestar, a pôr em causa, a relativizar, ou na relação desse conteúdo com outra informação que conhecem, neste segundo caso num processo normal de associação de ideias. Processo normal e que se quer rico: a capacidade criativa, que queremos desenvolver nas crianças desde cedo, passa muito pela capacidade de associação primeiro, e construção de ligações depois, entre conhecimentos e ideias aparentemente desligados que deste modo se integram numa nova visão, mais ampla…

Não é preciso ser especialista numa área da ciência para fazer análises de tipo lógico sobre dados e informações gerais, não-técnicas, dirigidas ao grande público, sobre essa ciência. Se o médico me prescrever um medicamento dizendo-me para o tomar à noite antes de ir dormir, e se mais tarde leio na bula que ele deve ser tomado com a primeira refeição da manhã, procurar esclarecer estas duas informações aparentemente contraditórias não é querer passar nem por médico nem por farmacêutico! E os especialistas de ciência não têm, só por o serem, nenhuma capacidade intelectual especial para a análise lógica e para a associação e estabelecimento de relações entre informações e conhecimentos diversos e dispersos de âmbito geral. Essa capacidade dependerá naturalmente do treino, maior ou menor, que se foi tendo e cultivando neste tipo de pensamento, mas não resulta necessariamente de um treino científico específico, ainda que este implique um grande trabalho e esforço intelectual, mas que é muito concentrado e dirigido. Conheci alguns matemáticos de primeira água, excelentes e muito criativos como matemáticos, que neste tipo de capacidade intelectual, mais geral, me pareciam bastante limitados! (E todos já vimos especialistas – “doutores”, de diploma certificados – de todas as áreas, do direito à medicina, que, pelo menos fora da sua especialidade, são um bocadinho broncos!).

Até me parece que entre as áreas de trabalho intelectual da Academia, há algumas que, pela sua natureza, pelo tipo de pensamento envolvido, proporcionam um treino bem melhor e mais profundo neste tipo de pensamento do que as áreas das ciências exatas e naturais. Eu convivi mais de perto com gente da matemática e da filosofia (analítica): não tenho dúvidas que em geral (as exceções são inevitáveis), as pessoas da filosofia têm, neste aspeto, grande vantagem sobre as da matemática. Porque o trabalho delas usa e está muito mais dependente deste tipo de pensamento; imagino que o mesmo se passe com outras áreas das humanidades, como a Sociologia ou a História. O trabalho dos matemáticos tem a dificuldade particular da grande abstração em que se desenvolve, e da complexidade do espartilho formal, mas a quantidade de informação e a teia de relações entre os seus diferentes conteúdos e zonas com que têm de lidar é incomparavelmente menor e menos complexa.

Nas críticas dos “negacionistas” à visão predominante, para além de serem questões de tipo lógico as que predominam, a parte científica, técnica, que mais é por eles referida e debatida não configura nenhum trespasse abusivo de áreas que eles não dominam, em que não são especialistas. Na verdade, o que predomina não são questões das áreas de saúde, medicina, virologia, epidemiologia, administração hospital, etc. nas especificidades que as caracterizam. O que predomina, de longe, é… a Matemática! São sobretudo números de estatísticas e gráficos, envolvendo alguns conceitos e interpretações relativamente simples; são naturalmente referentes àquelas áreas, à sua quantificação e estudo matemático, mas em última análise é… Matemática! E não é preciso ser um “especialista”, ser mesmo um matemático de formação, para conhecer e lidar com a matemática envolvida! Nem sequer é necessário ter tido formação em cursos de ciências ou engenharia ou economia (e para quase toda essa matemática o 12º ano chega). Há muita gente das ciências sociais, do desporto, até das humanidades que a conhece; se não com um domínio suficiente para fazerem eles próprios as suas análises, pelo menos para poderem seguir e divulgar as análises de terceiros, de outros “negacionistas”.

Chego ao fim…Com um aviso relativo a liberdade de expressão, nos comentários. Faço-o só por uma questão de princípio. Seria presunçoso fazê-lo, no meu caso, que sou um perfeito desconhecido, pensando que teria alguma importância prática: sou normalmente lido no máximo por umas poucas dezenas de pessoas e agora, neste massudo e maçador testamento, provavelmente por não mais do que umas unidades. O princípio vem de eu ter visto algumas pessoas a queixarem-se de terem sido bloqueados por algum “negacionista” após fazerem comentários críticos em algum dos seus posts. Vi-o, por exemplo, numa “resposta” do médico Carona a Raquel Varela, em que em vários comentários a acusavam de os ter bloqueado no seguimento de comentários que teriam feito na página dela. E de assim de recusar ao debate livre e aberto, em suposta contradição com o que ela sempre defende, incluindo a liberdade de expressão. A Raquel diz que apenas bloqueia os autores de comentários mal-educados e grosseiros (é o que não falta!). Faz muito bem, eu faria o mesmo; mas, não tendo audiências, não tenho esse tipo de problemas, como já disse. Se estivesse na posição dela, além de fazer desaparecer imediatamente e com carácter definitivo os broncos grosseiros e os seus comentários, apagaria também outros comentários, ainda que bem-educados e civilizados (como devem ser), e eventualmente bloquearia também os seus autores se, após aviso, insistissem em os vir fazer. Por outras razões neste caso e é este o princípio: por exemplo, se eu considero certas intervenções alarmistas e prejudiciais, porque exacerbando os medos das pessoas lhes provocam uma distorção da noção dos riscos induzindo assim comportamentos pouco racionais (como ter medo de procurar assistência médica), se eu não tenho por hábito usar o espaço das páginas dessas pessoas para as contrariar, por que razão haveria de permitir que usem o meu espaço, aumentando assim as suas audiências, para divulgarem as suas ideias e opiniões, a propósito de me estarem a “responder” e em nome da liberdade de expressão?! Se ler certos comentários e argumentações em publicações alheias é por vezes um verdadeiro cilício intelectual, por que razão haveria de aceitar, e ter de aguentar, o apertar desse cilício lendo os mesmos disparates na minha própria página?!

Chegado ao fim, e porque o prometido no ponto 17 é devido, aqui vai um exemplo de um resultado matemático muito surpreendente e contra-intuitivo.

Com os meus sinceros agradecimentos a quem aqui chegou. Espero que possam ter tirado proveito de algumas ideias e informações…

A Ervilha e o Sol…

Sabem o que é um puzzle, um jigsaw puzzle… É esta a ideia base por detrás do exemplo: construir figuras geométricas, planas, a partir de um conjunto de peças separadas ajustando-as entre si perfeitamente, isto é, sem falhas ou espaços nas junções. A diferença para o puzzle mais habitual em que o que construímos é em geral um retângulo (às vezes um círculo) e a dificuldade consiste em fazê-lo reproduzindo corretamente uma imagem impressa nas peças, aqui não há quaisquer imagens a reproduzir e o jogo consiste em fazer diferentes figuras geométricas com o mesmo conjunto de peças. Mais especificamente, cortar uma dada figura geométrica num certo número (finito) de peças e reajustá-las (sempre de forma perfeita, sem deixar espaços nas junções) de maneira a obter outra figura diferente da primeira (Para um palavrão matemático: as duas figuras dizem-se equidecomponíveis).

Para o exemplo mais básico:

Pela figura anterior, vemos que um triângulo pode ser transformado num rectângulo, através do seu corte em três peças. Dividimos o triângulo por uma linha a metade da altura: fica cortado num trapézio inferior e num triângulo mais pequeno, em cima. Dividimos seguidamente este triângulo mais pequeno em dois, verticalmente (pela “altura” do triângulo inicial, que cai do seu vértice de topo). Em seguida estes dois triângulos são movidos para os lados, como indicado pelas cores, formando o retângulo.

É claro que o triângulo e o retângulo terão a mesma área….

Há um teorema muito bonito que generaliza este exemplo básico. É o Teorema de Bolyai-Gerwien: diz que duas figuras poligonais planas (isto é delimitadas por um conjunto de linhas quebradas) são equidecomponíveis se têm a mesma área. Podemos cortar uma das figuras num certo número de peças, que podemos supor serem triângulos, e rearranjá-los de maneira a construir a outra figura. (Este resultado e a sua prova pode ser explicado, de forma bastante convincente, a alunos interessados do secundário, como sei por experiência)

O mesmo se poderia pensar em fazer no espaço tridimensional, com sólidos poliedrais. Na verdade, o terceiro problema da famosa lista de Hilbert era precisamente esse, mas na negativa, conjeturando que nem sempre dois poliedros com o mesmo volume seriam equidecomponíveis, através do seu corte em peças também elas poliedrais (que podemos supor serem todas pirâmides triangulares). Foi o primeiro problema da lista de Hilbert a ser solucionado, pelo seu aluno Max Dehn (um brilhante topólogo) que mostrou que um Cubo e um Tetraedro com o mesmo volume não são equidecomponíveis.

O exemplo que nos interessa envolve também sólidos no espaço, mas não apenas poliedros e resulta de considerar o problema da equidecomponibilidade de forma mais geral admitindo que as peças dos cortes sejam quaisquer e não apenas poliedrais, como no terceiro problema de Hilbert.

E neste caso a mudança é radical! Aparecem as chamadas decomposições paradoxais. Existe um teorema, chamado o Paradoxo de Banach-Tarsky que diz o seguinte:

Considere-se uma esfera sólida. Aqui, “sólida” é no sentido de uma das mais úteis e usadas abstrações matemáticas: a ideia é de uma substância sem falhas, sem quaisquer porosidades, um espaço “contínuo” constituído por pontos sem dimensão: é o que se descreve, no ensino da matemática, como o conjunto de pontos do espaço euclidiano cuja distância a um certo ponto, o centro da esfera, é menor ou igual a um certo comprimento, dito o raio da esfera. É possível decompor a esfera num certo número de peças e rearranjá-las no espaço (apenas deslocando-as de forma rígida sem as deformar, como num puzzle) de forma a formar duas esferas do mesmo tamanho da esfera dada! E há variações ainda mais impressionantes do teorema: quem diz duas, diz três ou um qualquer outro número. Mais impressionante podemos formar uma outra esfera do tamanho que quisermos! Vem daí o título da secção: podemos começar com uma esfera do tamanho de uma Ervilha e reconstruí-la numa esfera do tamanho do Sol!

Claro que é um resultado contra-intuitivo, paradoxal, e que coloca em causa várias noções básicas de que nos servimos para explicar o mundo… A primeira objeção que nos ocorre é a de que o teorema viola a nossa noção de volume e das propriedades que lhe atribuímos. Os matemáticos explicarão que as peças da decomposição não são suscetíveis de lhes ser atribuído um volume. Dizemos que são conjuntos não-mensuráveis; conjuntos cuja existência há muito se conhece. Pelo menos dentro das noções de volume que são usadas na matemática e que aparecem como processos de aproximação sucessiva dos objetos espaciais através de figuras mais simples cujo volume tem definição óbvia, como, por exemplo, os cubos.

Este paradoxo tem sido bastante usado para discutir a validade de um dos princípios básicos dos fundamentos da matemática: um dos axiomas da teoria dos conjuntos, chamado o Axioma da Escolha. Porque a prova do teorema depende de forma essencial do seu uso. Como aliás grande parte dos resultados da matemática, por vezes sem sequer nos apercebermos que o estamos a usar, quando ele não é invocado diretamente, mas aparece escondido pelo recurso a um outro resultado que por sua vez dele depende… Por outro lado, este axioma da escolha aparece-nos como um princípio de aceitação natural e bastante óbvio. Ele diz simplesmente que dada uma coleção de conjuntos (um conjunto é um qualquer agregado de “coisas” – que podem ser abstratas – a que chamamos os elementos do conjunto) podemos formar um outro conjunto escolhendo um elemento de cada um dos conjuntos da coleção. O problema é que este princípio cuja verdade parece de aceitação óbvia quando estamos a falar de coleções e conjuntos finitos, gera problemas subtis quando passa para o domínio do infinito, uma abstração matemática essencial à sua construção… E à nossa conceção de espaço, associada à ideia de um continuum feito de pontos sem dimensão – começando no continuum linear – a reta dos números reais – e passando para as dimensões superiores do plano, do espaço tridimensional, do espaço-tempo… Em que vivemos entre estrelas e galáxias, passado, presente e futuro

Este tipo de discussão filosófica sobre os fundamentos da matemática é antiga, muito rica, mas não parece ter solução visível, fim à vista. Mas não é necessário que tenha, já que, à semelhança do que se passa com a falta de consenso nas interpretações da mecânica quântica, o que interessa é que a utilidade e eficácia da matemática, a sua “unreasonable effectiveness” não depende da existência de consenso relativamente a estas sofisticadas questões… Deixo aqui a referência de um livro (de divulgação geral, mas um pouco técnico) sobre este paradoxo, que poderão ver no caso de ficarem interessados no assunto. O livro é muito bem feito e tem uma extensa bibliografia… (Podem também, a um nível mais acessível, consultar a Wikipedia que tem artigos bastante razoáveis sobre os tópicos mencionados: Teoremas de Bolyai-Gerwien e Banach-Tarsky e terceiro problema de Hilbert)

The Pea and the Sun – A Mathematical Paradox, by Leonard M. Wapner

A K Peters, Ltd. Wellesley, Massachusetts, 2005

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