O Governo decidiu, sem base em critérios epidemiológicos credíveis, aplicar desconfinamentos a várias velocidades em função de incidências cumulativas e sem qualquer discriminação dos municípios. Deste modo, em várias dezenas de concelhos bastará uma ou duas famílias com casos positivos numa recôndita aldeia e todo o seu território ficará a marcar passou ou será obrigado a novo confinamento. O FAROL XXI mostra quais são os municípios mais sujeitos ao olhar cego do Estado, revelando quantos testes são necessários para atingir os limites “proibidos”, que aliás podem ser ultrapassados facilmente apenas com falsos positivos. O Novo Normal de abre-e-fecha pode estar para ficar se esta estratégia criar raízes.
Pedro Almeida Vieira
São 107 os concelhos que necessitam de 10 ou mesmo menos casos positivos, durante duas quinzenas consecutivas, para estancarem no processo de desconfinamento decretado pelo Governo. Por outro lado, 32 concelhos podem mesmo ter de recuar no processo de regresso à normalidade caso tenham 10 ou mesmo menos casos positivos durante um mês. Esta é a consequência da aplicação ao nível concelhio de critérios burocrático, sem base epidemiológica, que se baseiam na incidência cumulativa em 15 dias, penalizando assim fortemente os pequenos municípios, uma grande parte dos quais com baixa densidade populacional e dispersão de aglomerados urbanos.
Em Conselho de Ministros, o Governo de António Costa determinou que o plano de desconfinamento recuará para uma fase anterior em todos os concelhos que, pela segunda avaliação quinzenal consecutiva, se encontram com uma taxa de incidência superior a 240 casos por 100 mil habitantes nos últimos 14 dias. Deste grupo fazem, agora, parte os concelhos de Moura, Odemira, Portimão e Rio Maior, que assim terão amanhã, dia 19 de Abril, de encerrar esplanadas, lojas até 200 metros quadrados com porta para a rua, ginásios, museus, monumentos, palácios, galerias de arte e similares, sendo também proibida a realização de feiras e mercados não alimentares (por decisão municipal) e a prática de modalidades desportivas de baixo risco.
Os concelhos entre 120 e 240 casos positivos por 100 mil habitantes pela segunda quinzena consecutiva ficarão em stand-by, não passando para a fase seguinte. Estão neste lote seis concelhos: Alandroal, Albufeira, Carregal do Sal, Figueira da Foz, Marinha Grande e Penela. Além destes há mais 13 municípios – Aljezur, Almeirim, Barrancos, Mêda, Miranda do Corvo, Miranda do Douro, Olhão, Paredes, Penalva do Castelo, Resende, Valongo, Vila Franca de Xira e Vila Nova de Famalicão – que já tiveram uma quinzena acima dos 120 casos por 100 mil habitantes. Se houver nova ultrapassagem do limite burocrático, ficam pelo menos estagnados no desconfinamento.
Esta estratégia de desconfinamento baseado em valores de incidência cumulativa por município, sem qualquer base científica sólida, penaliza sobretudo os concelhos de pequena dimensão do interior do país, onde aliás a densidade urbana é bastante menor, e dispersa, em comparação com centros urbanos dos municípios do litoral. Em alguns casos, basta literalmente uma família numa determinada freguesia apresentar casos positivos para colocar em causa o desconfinamento de todo o concelho. Tudo isto porque, extrapolando-se a incidência para uma população de 100 mil habitantes, os concelhos com poucos milhares de residentes veem os seus números absolutos, mesmo baixos, subirem para níveis relativos elevados.
Existem potenciais casos caricatos. Por exemplo, no município açoriano do Corvo se houver dois novos casos positivos em duas quinzenas será determinado um lockdown. Como esta ilha tem apenas 466 pessoas, dois novos testes positivos em cada 15 dias significará uma incidência cumulativa de 430 casos positivos por 100 mil habitantes. Barrancos (1.640 habitante) e Lajes das Flores (1.464 habitantes) precisam apenas de 4 novos casos positivos em duas quinzenas para recuarem no desconfinamento. Nos concelhos de Alvito, Mourão, Alcoutim, Santa Cruz das Flores e Porto Moniz talvez já sejam necessárias duas famílias “infectadas” por quinzena para o mesmo propósito: 6 novos casos positivos em cada duas semanas e ao fim de um mês o município “fecha”.
Segundo uma análise feita pelo FAROL XXI, com base nas estimativas populacionais do Instituto Nacional de Estatística, pelo menos os 33 concelhos com menos de 4.500 residentes, dos quais seis dos arquipélagos dos açores e Madeira, vão andar sempre de coração nas mãos. Para atingirem uma incidência acumulada superior a 120 casos positivos por 100 mil habitantes precisam apenas de, no máximo, cinco casos positivos por quinzena. Para chegarem aos 240 basta o dobro, ou seja, 10 casos. Se os municípios decidirem realizar testes em massa em assintomáticos – por exemplo, mais de 1.000 testes numa quinzena –, a probabilidade de ultrapassarem o número de casos positivos suficiente para fazer recuar o desconfinamento será muito elevada. Não apenas por via de eventualmente terem surtos reais, mas sim por causa da ocorrência de falsos positivos, que dependem da baixa prevalência e da especificidade (mesmo se esta for de 99%).
O risco de muitos outros concelhos serem apanhados nesta “teia burocrática”, criada pelo Governo para a gestão do desconfinamento, é bastante elevada – uma espécie de espada de Dâmocles. Com efeito, dos 308 municípios, 120 têm menos de 10 mil habitantes. Deste grupo, 107 “apenas” precisam, no máximo, de 10 novos “infectados” (ou supostos “infectados”) por quinzena para começar a rezar para que a quinzena seguinte não seja semelhante. Um surto numa aldeia pode implicar o recuo de todo o concelho.
Na verdade, ninguém parece estar livre, sobretudo porque, por via das “falhas” dos testes PCR e de antigénio – leia-se, a especificidade perante baixas prevalências – facilmente podem ocorrer incidências cumulativas superiores a 120 ou mesmo 240 casos positivos por 100 mil habitantes em qualquer concelho. E mesmo se, entretanto, o SARS-CoV-2 “desaparecer em combate”.
Nota: Simulação realizada com base na população estimada por concelho em 2019 pelo Instituto Nacional de Estatística.