Lourenço Bray – Consultor
Há dias estive a estudar as curvas de óbitos covid-19 e as mortes por milhão por país, disponibilizadas no Worldometer, e depois a tentar perceber que hipóteses é que são colocadas para explicar a razão para o suposto “desastre” em países como a República Checa e Bélgica. Assim como a Suécia devia servir para questionar as máscaras obrigatórias e os confinamentos, também os “maus” exemplos poderiam dar pistas sobre o que pode correr mal e porquê.
No ranking de mortes por covid per capita, os países com os valores mais altos são, por ordem, Gibraltar, República Checa, São Marino, Hungria, Bósnia, Montenegro, Bulgária, Bélgica, Eslovénia, Macedónia, Eslováquia, Itália, Reino Unido, Estados Unidos e Portugal. Logo se vê que há um problema grave em qualquer ranking cego deste tipo: estamos a comparar alhos com bugalhos.
Nenhuma comparação razoável pode tratar da mesma forma um rochedo como Gibraltar, e uma migalha como São Marino, com um quase “continente” como os Estados Unidos. O ranking continua, naturalmente. O Brasil, que por alguma razão para os media está a lidar muito mal com a covid-19, estava em 18º lugar. A Índia, que continua a dar que falar aos jornalistas, está em 120º lugar, com 121 mortes por milhão de habitantes (Portugal tem 1661 mortes por milhão, portanto, mais de 10 vezes o valor da Índia).
Mesmo um país como Portugal, geograficamente periférico, com uma só fronteira terrestre pouco povoada, não devia ser comparado com a Bélgica, que está no meio da Europa com milhares de habitantes que viajam constantemente vindos de todo o Mundo e com uma densidade populacional de 384 habitantes por km2 contra os 112 de Portugal. Bom, poder ser comparada pode, mas é preciso ter em conta estes e muitos mais factores.
Depois, não há qualquer garantia que os números de contabilização dos mortos tenham metodologias sequer remotamente parecidas, fiáveis ou honestas. E continuam a ser re-avaliadas. Por exemplo, esta semana saiu a notícia de que 25% dos óbitos covid-19 no Reino Unido foram mal atribuídos. E ainda há a questão de morrer “com” e morrer “de”.
Os números podem deliberadamente ser inflacionados, ou minimizados, dependendo do contexto político e dos interesses ou da mera capacidade de testagem dos países.
No entanto, mesmo assumindo estas imperfeições e ignorando extremos, é um facto que há países que tiveram mais óbitos do que outros, e que podem ser mais ou menos comparados entre si. A densidade populacional ou o clima podiam explicar diferenças entre Portugal e Bélgica, mas não explicam as diferenças entre Bélgica e Holanda. A Holanda tem menos de metade dos mortos-covid per capita da Bélgica, mas terá um clima parecido, também é central e até tem uma densidade populacional maior.
Depois, temos ainda assimetrias de dados nas regiões desses países. E das cidades. Ou de realidades como lares de terceira idade. E do nível de vida dos idosos, do seu acesso à saúde.
Como se vê, qualquer análise univariada pecará por incompleta.
Há muita coisa que poderá explicar estes números. Posso assegurar que esta heterogeneidade entre países indica pelo menos que o problema é complexo, e determinado por variáveis que não são óbvias. Indica uma espécie de caos de onde uma conjugação de factores cria realidades diferentes. Podemos especular com demografia (países com mais idosos), de clima, de concentração em zonas urbanas, de hábitos sociais ou culturais (que talvez explique as situações da Itália e Espanha, face à convivência familiar), de diferentes estirpes do vírus, de PIB per capita, de existência de imunidade prévia ou não, condições nos lares, etc..
Passo agora às explicações sobre a República Checa ou a Bélgica, que andei a vasculhar nos media. Regra geral, tendem a falar sempre de algo que podia ser feito e não foi: não se fizeram lockdowns no momento certo, ou com a dureza necessária. De todo o universo de explicações e factores que acima mencionei, os jornalistas seleccionam sempre aquelas que tendem a colocar o ónus no comportamento dos governos /autoridades/pessoas, como se a Bélgica e os belgas, ou a República Checa e os checos, tivessem alguma diferença essencial no que fizeram e nos seus comportamentos, e nos seus lockdowns, face a países que poderiam ser comparados nesse domínio, nomeadamente vizinhos. Há coisas que até sabemos, por exemplo, algo que parece sólido, até agora, é que os lares são um ponto nevrálgico, em várias geografias foram focos de mortalidade elevada (em que medida máscaras na rua e confinamentos e testagens maciças globais ajudam nisso, fica ao critério dos “especialistas”). Pode-me ter escapado, mas não vi essa explicação aplicada a estes dois casos – como foi em Nova Iorque, quando se refere a decisão do governador Cuomo de mandar os idosos doentes dos hospitais para os lares onde infectaram os vizinhos.
Os media empurram sempre a explicação para a falta de medidas mais duras, incompetência do poder político ou irresponsabilidade das pessoas, apoiados por especialistas sanitários dispostos a manter a narrativa de pânico para alterar comportamentos e influenciar políticos. São explicações no mínimo superficiais e desonestas, não apenas pelos exemplos opostos, como a Suécia ou o Texas, mas até pelos exemplos de países que fizeram exactamente a mesma coisa e têm outros indicadores.
Segundo, os media estão consistentemente a esquecer que os lockdowns são explicados pela própria variável. É uma variável endémica. É quase certo, sendo este vírus aparentemente sazonal como outros, com o seu padrão complexo, que depois de um momento de “calmaria”, como o actual, virá um pico de casos. Pode acontecer em Maio, em Junho ou só em Outubro. Não sabemos. Mas é bem provável que surja, infelizmente.
O Astrólogo Froes, o professor Karlunga Antuninga ou o Vidente Buescu vêm para a televisão, nestas alturas, em que não há casos, mas há uma tendência de aumento. E ficam semanas a fio a vaticinar os maiores desastres causados pelos desconfinamentos, protegidos pela aparente amnésia dos media e dos espectadores assustados, que se esquecem que aqueles dizem o mesmo constantemente. E que fazer sucessivos prognósticos de algo mais do que expectável, errando sucessivamente, não é propriamente útil.
Terceiro, há sempre uma componente política de crítica aos respectivos governos ou populações. No caso belga, o delírio vai ao ponto de dizer que o problema é a existência de duas regiões que não se entendem. Não é diferente do delírio que era o “milagre português” em que, por oposição, se atribuía os baixos números à grande capacidade dos portugueses e do seu governo. Eu juro que, nessa altura, os meus olhos viram artigos de jornalistas a explicar que o segredo do sucesso de Portugal (ao contrário de Espanha) era a sua estabilidade política e o seu consenso patriótico. Depois veio a nossa tempestade de Janeiro, e aí afinal já fomos más pessoas, e a culpa foi do Natal.
Quando leio sobre o Peru – um país com lockdowns draconianos, e que aparentemente foi muito atingido pela covid-19 –, não faltam as explicações de pobreza, de falta de contrato social, e por aí fora, como se não houvesse pelo mundo fora mais 100 países pobres e sem contrato social que não parecem ter sido atingidos pela pandemia. Dá a sensação que qualquer pessoa pode projectar na covid-19 o que lhe apetece, até casos extremos, como o alucinado João Júlio Cerqueira do Scimed, que disse na televisão que havia uma relação entre a covid-19 e a extrema direita. Vale tudo.
Eu posso dizer isto com 25 anos de experiência em estatística: sempre que alguém aparece na televisão a dizer que a culpa do aumento/baixa de casos foi de algo específico (por exemplo, abertura de escolas) e que devia ser feita outra coisa, está a dizer algo incorrecto. Pode até ser bem-intencionado, mas está incorrecto. E é irresponsável.
O problema não é exclusivo de Portugal. Como se atribui errada e exclusivamente a existência de casos e óbitos-covid-19 à responsabilidade dos governos ou das pessoas, de ideologias ou sistemas políticos, então a explicação é sempre vítima de uma polarização política e de um viés emocional e ideológico. Como o produto medo/sensacionalismo é o que gera mais cliques e audiências, os media só têm um incentivo para manter o fogo a arder com quem forneça esse tipo de narrativa. E com isso arrastam os políticos.
Em resumo, eu não consigo perceber porque é que cada país tem os números que tem, nomeadamente a Bélgica e a República Checa, porque não vi qualquer explicação sequer plausível. Acredito que haja, e que um dia se percebe.