
A ausência de confiança perante a pandemia da covid-19, e os fracos apoios do Governo para garantir estabilidade económica das famílias, está a levar a uma redução inédita e muito preocupante no número de partos. No mês de Janeiro deste ano – o primeiro que íntegra, na totalidade, o nascimento de bebés concebidos desde o início do Estado de Emergência na segunda quinzena de Março de 2020 – apenas se registaram 5.891 novas vidas. O FAROL XXI foi vasculhar registos desde os primórdios do Instituto Nacional de Estatística e concluiu que, desde 1864, nunca nasceram tão poucos bebés. Se os próximos meses confirmarem uma retracção similar, a natalidade portuguesa em 2021 pode nem sequer chegar às 70 mil novas vidas, o que significaria uma redução de quase 15 mil pessoas em relação a 2020. O salvar pessoas a todo o custo está assim a mostrar também um amargo reflexo: com uma estratégia de medo e incerteza, milhares de potenciais entes perderam a possibilidade de se formar… e viver, mesmo sob risco.
Pedro Almeida Vieira

O impacte indirecto da pandemia – agravada pela incerteza económica resultante dos confinamentos, em parte devido à estratégia política assente em confinamentos e restrições com fracos apoios governamentais – está a produzir um impacte brutal nos nascimentos. De acordo com dados do Instituto Nacional de Estatística (INE), no mês de Janeiro de 2021 – o primeiro em que, com excepção dos prematuros, as concepções ocorreram integralmente já após a primeira vítima de covid-19 em Portugal – apenas foram registados 5.891 recém-nascidos. Este é o valor mensal mais baixo desde que existem registos estatísticos, ou seja, a partir de 1864.
Antes de 2021, consultando a informação mensal discriminada pelo INE (somente a partir de 2002), o mês de Janeiro com menos nascimentos ocorreu em 2014, com apenas 6.773 nados-vivos. O ano de 2014 é também, até agora, o de menor natalidade, com apenas 82.613 nascimentos, uma média mensal de cerca de 6.884 recém-nascidos. Desde 2014 registaram-se variações acima desse valor, entre um mínimo de 84.691, em 2020, e um máximo de 87.440, em 2016. Em relação ao mês de Janeiro, os nascimentos entre 2015 e 2020 apresentaram uma evolução positiva face a 2014, sempre acima dos sete mil nascimentos. No primeiro mês do ano passado tinham nascido 7.327 crianças.

A situação actual é completamente inaudita. Desde a segunda metade do século XIX – quando se iniciaram os registos estatísticos da população – nunca houve qualquer mês com tão poucos nascimentos como em Janeiro de 2021, mesmo em períodos em que Portugal tinha menos de metade da população actual. De facto, embora não se haja dados discriminados por mês anteriores a 2002, a consulta de diversos registos e dos Censos por década mostram de forma inequívoca que, pelo menos depois de 1864 (ano dos primeiros Censos), nasceram em Portugal sempre mais bebés, quer fosse em Janeiro quer fosse em qualquer outro mês.

Embora se observem algumas variações entre meses – desde 2002, em Setembro nascem 293 crianças por dia, e no extremo oposto, em Março e Abril nascem 253 –, cada mês representa sensivelmente 8,3% dos nascimentos do ano. Ora, atendendo ao total absoluto de recém-nascidos em qualquer dos anteriores anos do presente século, e até mesmo dos séculos XX e XIX, conclui-se que nunca outro mês teve, em comparação com Janeiro de 2021, tão poucas pessoas a ver a luz do Mundo pela primeira vez. Por exemplo, em anos mais recentes, entre 2002 e 2010, já com dados mensais discriminados, os nascimentos anuais rondavam os 100 mil, e o mês de Janeiro viu nascer entre 7.866 e 9.783 bebés. Neste período, o mês com menos nascimentos foi Fevereiro de 2014, com apenas 5.998 nascimentos – mais 108 do que Janeiro de 2021 –, mas atendendo a que integrou apenas 28 dias, este valor equivale a 6.640 bebés de um mês com 31 dias.
Se se recuar para anos anteriores, o número de recém-nascidos em Janeiro, ou qualquer outro mês, terá sido sempre muitíssimo superior ao de Janeiro de 2021, considerando, por exemplo, que em 1990 nasceram cerca de 116 mil crianças, em 1980 mais de 158 mil, em 1970 um pouco acima das 180 mil e em 1960 quase 214 mil. Neste último ano terá assim nascido, em média, quase 18 mil crianças em cada mês.
Mesmo em décadas anteriores, quando Portugal era muito menos populoso, terão nascido muito mais pessoas em cada mês. Por exemplo, em 1930 o país tinha apenas 6,8 milhões de habitantes, mas os Censos reportam a existência de mais de 2 milhões de jovens com menos de 15 anos, o que revela, mesmo sem incluir mortes prematuras, o nascimento médio de mais de 130 mil crianças por ano, e concomitantemente de mais de 10 mil por mês.

Nem nos anos da Gripe Espanhola – que matou mais de 120 mil pessoas –, quando a população portuguesa rondava os 6 milhões de habitantes, a natalidade ficou tão baixa. É certo que a taxa de natalidade, que estava então ligeiramente acima dos 30 por mil habitantes (‰) no início da segunda metade da década de 1910, desceu por via da morte de população jovem durante a epidemia (e também pela Guerra Mundial), porém sem impacte demasiado relevante. Segundo os Censos de 1920, a taxa de natalidade em 1918 situou-se em 28,8‰, descendo ainda para 26,4‰, recuperando logo em 1920 para 32,1‰. Significa isto que em 1918 terão nascido cerca de 170 mil crianças (média mensal acima der 14 mil) e em 1919 cerca de 158 mil (média mensal superior a 13 mil).
Recuando um pouco mais no tempo, nos Censos de 1900, e tendo Portugal então apenas 5,4 milhões de pessoas, foram recenseados 131.470 bebés com menos de um ano. Mais de três décadas antes, no primeiro Recenseamento da População, em 1864, encontram-se contabilizados 15.336 bebés com menos de 1 mês de idade. E mesmo sabendo que a taxa de mortalidade infantil era brutalmente elevada – no primeiro ano de vida atingia cerca de 40% dos recém-nascidos – em nenhum escalão etário mensal se encontram contadas menos de 6.800 pessoas. Portugal tinha então somente 4,2 milhões de habitantes.

Os efeitos da “retracção” na decisão de se ter filhos no decurso da pandemia já se terá manifestado em Dezembro de 2020, embora de forma mais ténue, o que se mostra compreensível. Se considerarmos que a primeira vítima da covid-19 faleceu em 16 de Março de 2020, a generalidade das crianças que nasceram na segunda quinzena de Dezembro passado já terão sido concebidas durante a pandemia. E, de facto, no último mês de 2020 houve já uma redução de 677 nascimentos face ao período homólogo de 2019 (6.827 vs. 6.964), mas portanto muito mais ténue do que se viria a verificar em Janeiro passado. Note-se, contudo, que o segundo semestre de 2020 mostrou já sinais de inesperado “abrandamento” dos nascimentos face ao primeiro semestre. Com efeito, se entre Janeiro e Junho, o ano de 2020 até registou mais 293 nascimentos do que o período homólogo de 2019, o segundo semestre foi muito diferente: no ano passado nasceram, nesse período, menos 2.628 crianças. Em princípio, embora estranha, esta variação entre semestres não tem qualquer relação com a covid-19, uma vez que esta doença não mostra efeitos negativos durante a gravidez, tanto mais que os óbitos perinatais até foram mais baixos em 2020 do que em anos anteriores, de acordo com dados do INE.

O mínimo histórico dos nascimentos em Janeiro deste ano coincidiu também com um máximo histórico (neste caso desde 1960). De acordo com o INE morreram 19.628 pessoas no primeiro mês de 2021 – em resultado da covid-19, de uma onda de frio e do colapso do Serviço Nacional de Saúde –, tendo assim, como consequência, um saldo natural negativo de 13.737 pessoas. A ocorrência de saldos naturais negativos – isto é, mais óbitos do que nascimentos – tem sido, infelizmente, uma situação habitual em Portugal nas últimas décadas. Contudo, entre 2011 e 2020, o pior valor tinha sido registado em Janeiro de 2017, com um saldo negativo de 6.577 pessoas, por sinal durante um mortífero surto gripal. Desta vez, porém, diminuindo a mortalidade – como sucede com um surto gripal e como ocorre agora com a covid-19 –, o saldo natural continuará, por certo, muito negativo durante largos meses, porque as vidas que deveriam nascer… não nascem. Este é, pois, um lado negro, triste, nunca falado da péssima gestão da pandemia, e que mostra outro tipo de “vítimas”: as ignoradas crianças que não nasceram. E que teriam, cada uma, uma esperança de vida de 80 anos.