Pedro Girão | Médico Anestesiologista
Passado um ano, o pior da pandemia foi… tudo, obviamente. Mas o “pior” talvez tenha sido a sucessão de mentiras que fomos obrigados a ouvir diariamente. O Presidente da República mente; o primeiro-ministro mente; as autoridades de saúde mentem; os especialistas mentem; os jornalistas mentem. Todos têm as suas razões ou o seu nível de ignorância médico-sanitária que os impede de perceber ou admitir a verdade. E todos eles estão para a covid-19 como estão para o sexo dos anjos: por muito que o discutam, nada concluirão.
Sou médico; sinto-me, portanto, mais à vontade para criticar os médicos, porque sei do que falo e porque os erros deles recaem também sobre mim. Pelo contrário, nunca me ouvirão uma palavra negativa acerca dos enfermeiros, por exemplo; deixo as que possam existir para a crítica dos seus pares. E, pessoalmente, o pior da pandemia foi perceber a desadequação da maioria dos médicos para lidar com ela. Perceber como muitos não dominam os raciocínios mais elementares acerca de risco, de estatísticas, de números. Observar como a reacção emotiva que tiveram, e têm, perante a pandemia lhes toldou o discernimento científico e as atitudes clínicas. Ver como tantos utentes dos cuidados de saúde foram vítimas desse desvario. E, como muitos médicos foram chamados a falar em público, foi particularmente penoso ver a exibição pública dessas limitações, expressas através de disparates inqualificáveis.
Vou dar um exemplo, entre centenas possíveis. Não é o mais grave, longe disso, mas é emblemático. No final de Fevereiro deste ano, o Dr. Filipe Froes, pneumologista e coordenador do Gabinete de Crise da Ordem dos Médicos, excelente pessoa, médico tranquilo e respeitável, a quem sigo no Facebook, foi entrevistado na televisão, como já é habitual. Desde o início desse mês que os casos e as mortes-covid desciam de forma acentuada, mas ele continuava a pintar um quadro pessimista, como já é também habitual nele, advertindo para o perigo das variantes inglesa e brasileira. A jornalista perguntou-lhe se esse receio fazia sentido, uma vez que essas variantes já estavam em Portugal e, ainda assim, os números desciam. Foi então que o meu colega explicou que as variantes inglesa e brasileira se podiam “encontrar”, “conjugar”, “combinar”, “adicionar”, “trocar” material genético, de forma a surgir uma nova variante que juntasse o pior de cada uma delas. (As aspas são citações exactas dos verbos utilizados pelo entrevistado.)
Ora bem, a divulgação pública, em horário nobre, da ideia simplista de que os vírus tenham uma reprodução sexuada e transmitam as características “más” aos filhos seria hilariante se não fosse também revoltante, porque manipula factos. Não é fácil ver um representante da Ordem dos Médicos envergonhar desta maneira escandalosa a Medicina e a Ciência – e ser aplaudido pela Ordem dos Médicos e pela maioria dos seus membros. Não é fácil passar um ano a ouvir sucessivamente mentiras públicas de tantos médicos sem conseguir perceber inteiramente se são fruto de ignorância, de inaptidão emocional ou de um propósito consciente.
E se cito este exemplo do Dr. Filipe Froes é porque o respeito e estimo. Não me ocupo sequer de vários colegas que não me merecem qualquer estima nem respeito. (Muitos deles deixaram de os merecer precisamente neste último ano.) E não me ocupo também de especialistas “laterais” à Saúde, como por exemplo matemáticos (que igualmente estimo pessoalmente), pois desses pelo menos sei que nada sabem de Medicina nem de Saúde em geral. Não são esses que me custa ouvir falar. O que me custa, entendam-me bem, é ver o povo atraiçoado por aqueles que juraram defender o seu semelhante.
Mais tarde ou mais cedo, a pandemia terminará – por decisão das autoridades ou por imposição das pessoas. Finalmente, ficará tudo bem. Mas as nódoas que a pandemia deixou serão indeléveis: iremos curar, mas não iremos esquecer quem esteve contra nós.