
Elisabete Tavares | Jornalista e membro da Plataforma Cívica – Cidadania XXI


Vivemos dias decisivos de luta contra a desinformação. Mas também vivemos dias decisivos na luta contra a censura que nos estão a impor a todos diariamente. Concentrar nas mãos de uns poucos (e do Estado) a decisão sobre o que é ou não verdade é demasiado perigoso. Mas é isso que está a acontecer.
Durante 2020, e ao longo deste ano, assistimos a um reforço da censura nos media e nas redes sociais. Convidados para participar, como oradores, em conferências foram desconvidados depois de expressarem opiniões contrárias às das ‘autoridades’ – incluindo a Organização Mundial da Saúde (OMS). Estudos e opiniões de reputados académicos e cientistas foram classificados como desinformação nas redes sociais. Informação foi classificada como desinformação ou simplesmente apagada. Utilizadores das redes sociais foram bloqueados por publicarem ou partilharem informação científica credível e rigorosa.
No tempo do Estado Novo não se podia falar sobre política ou questionar os governantes e as suas decisões. Hoje não se pode questionar ‘a ciência’ por detrás de decisões de governos e da OMS nem a estratégia seguida no combate à epidemia. Não se pode falar da ciência por detrás do uso de máscaras, nem de vacinas feitas à pressa, nem de sistema imunitário. Também não se pode propor outras soluções às anunciadas pelas autoridades sanitárias. No Estado Novo havia censura em torno de política. Em 2021 há censura em torno dos temas da saúde e da ciência. Também não é bem visto questionar o regime policial instalado no país nem as medidas desproporcionais e abusivas. Não é bem visto criticar ou questionar o abuso de poder por parte dos governantes e autoridades.
Propaga-se hoje cada vez mais a ideia brilhante de que o jornalismo deve ser ‘responsável’. Também os jornalistas portugueses no Estado Novo praticavam esse jornalismo ‘responsável’. Afinal, era pelo ‘bem’ do país e para o ‘bem’ dos portugueses. O Governo ‘é que sabe’. A Direção-Geral da Saúde (DGS) ‘é que sabe’. Salazar é que sabia. Temos todos simplesmente que ‘obedecer’. É esse o dever dos ‘jornalistas responsáveis’. Este tipo de ‘jornalismo’ tem um nome: propaganda. Seja em Portugal, na China, nos EUA, na Rússia. Seja em 2021 ou em 1933.
A nova ‘Lei Salazar’ – plasmada na ‘Carta dos Direitos Humanos na Era Digital’ – é um produto dos tempos perigosos em que vivemos. Tempos do regresso de políticas de manipulação da informação que chega à população. De controlo da informação que pode chegar ao público em geral. No seu já famoso e chocante artigo 6º, o diploma é claro: será considerada desinformação toda a “narrativa comprovadamente falsa ou enganadora” e que “seja suscetível de causar um prejuízo público, nomeadamente ameaça aos processos políticos democráticos, aos processos de elaboração de políticas públicas e a bens públicos”. Sabendo hoje que, no último ano, foi considerada desinformação, além de estudos científicos, diversos dados factuais e opiniões de cientistas e académicos de topo a nível mundial, entre outros, percebe-se o perigo que tal lei representa.

A criação de ‘verificadores de factos’ é um outro dos produtos da nossa era. Não devido à desinformação e à Internet, mas devido ao facto de o jornalismo e o setor dos media estarem a passar por uma crise profunda. A necessidade de os cidadãos terem de procurar informação em outras fontes alternativas aos media tornou-se um imperativo a partir do momento em que os órgãos de comunicação social se fundiram com governos e com ‘autoridades’ e deixaram de exercer a sua função corretamente. Isso foi o que aconteceu em definitivo em 2020.
As redações estão cada vez mais magras, com menos ‘memória’. As redações trabalham para mandar notificações e obter cliques. A pressa é rainha. Não há praticamente espaço, nem tempo, nem meios para investigação, para análise, para aprofundar os temas.
Nos órgãos de comunicação social portugueses, os temas abordados são, em geral, idênticos. As pessoas ouvidas sobre alguns temas – como a epidemia – são invariavelmente as mesmas. Isso é mais notório nas TVs. Curiosamente, a maioria dos convidados a ir aos telejornais tem exatamente a mesma visão que a narrativa oficial.
Os órgãos de comunicação social não devem passar desinformação e notícias falsas. Também não devem dar palco e voz a ‘terroristas da epidemia’, que provocam o pânico ao difundirem previsões catastrofistas falsas e informação descontextualizada e inflamada. Mas isso tem acontecido. Os órgãos de comunicação social promovem esses influencers da era da epidemia e esperam que eles cumpram com a sua missão de espalhar o medo. Em nada contribuem para conter a epidemia. Em muito contribuem para passar desinformação, promover a sua imagem e aumentar a sua popularidade. E têm sido bem-sucedidos.
A nova ‘Lei Salazar’, que entra em vigor em breve em Portugal, a atuação dos media, em geral, no último ano e o caso das recentes dúvidas trazidas à luz do dia em torno do Polígrafo, um verificador de factos – fruto da investigação de Pedro Almeida Vieira – são sinais que nos devem deixar todos bem conscientes em relação aos perigos reais por detrás da intenção de se querer controlar a ‘verdade’.
É fundamental alertar a população para a desinformação. É imperativo empoderar os cidadãos para que consigam compreender a importância da verificação das fontes de informação. Sobretudo, é imperativo difundir a necessidade de se questionar o que se lê, o que se ouve e o que se vê. Seja na Internet, nos telejornais ou nos anúncios de políticos, comentadores ou influencers. É fundamental incentivar um espírito crítico nos cidadãos para que sejam autónomos e soberanos e decidam por si.
Mas, em vez disso, está a querer inventar-se a roda. Está a querer inventar-se a necessidade de controlar a informação quando essa necessidade já existiu. Existiu e existe em regimes políticos intolerantes face a dissidentes e opositores. Está a querer inventar-se um facto – que a desinformação é algo novo – e está a querer inventar-se uma arma nova – os verificadores de factos.
Mas a desinformação e as notícias falsas sempre existiram. E os ‘verificadores de factos’ também. Nas democracias chama-se jornalismo. Nas ditaduras chamam-se ‘supervisores da verdade’, que garantem que só passa a informação autorizada pelo regime. E isto não tem nada a ver com factos. Nem com a verdade. Nem com jornalismo.