Pedro Girão | Médico Anestesiologista
A minha rua está em obras há mais de um ano. Lembro-me bem como foi: primeiro colocaram uns avisos; depois umas vedações. A seguir foram chegando máquinas, bulldozers, camiões, profissionais, polícias, repórteres e muita, muita gente a falar da minha rua como se fosse a sua. Uns diziam que o piso de paralelo era perigoso, outros diziam que a sinalização provocava acidentes, outros afirmavam que as árvores podiam tombar a qualquer instante, todos gritavam que ninguém podia circular nela. Uma única coisa era clara: nenhum deles sabia nada.
A televisão fez uma reportagem a dizer que a minha rua tinha a maior percentagem de mortes por superfície de paralelo – apesar de na rua ao lado morrer 30 vezes mais gente no alcatrão. Os jornais fizeram reportagens e mostraram fotografias de uma árvore podre – mas era a única árvore podre, e fizeram-na parecer como se ela fosse todas as árvores. Aos poucos, o irreal tornou-se surreal, a especulação tornou-se facto, a ameaça tornou-se certeza, a repressão tornou-se lei, e finalmente todos percebemos que o processo não tinha retorno – porque havia quem lucrasse com ele.
Ali, no meio da rua que sempre foi a minha, uma rua normal, útil, tranquila, buliçosa, fresca, vulgar, rotineira, começou a respirar-se um medo espesso e sufocante. De repente, tive pena dos muitos anos que desperdicei sem passear na minha rua, sem olhar para a minha rua (mas porquê, se ela nada tinha de extraordinário?…), sem amar apaixonadamente a minha rua. Dia após dia, olhava para a rua, abandonada e deserta, e lembrava-me dos carros que antes estacionavam e me impediam de sair da garagem, lembrava-me da insistência dos arrumadores a pedir uma moedinha, lembrava-me dos miúdos que costumavam tocar à campainha, todos os dias, ao ir e a vir da escola, e tive saudades de tudo, até do que antes me irritava. Onde estavam eles? Onde estavam todos?
Na minha rua, agora esventrada, desfeita, morta, todos os dias continuam a circular políticos, engenheiros, polícias, militares e dúvidas. Vejo-os ao sair de casa, ocupando a rua, e sei o sabor do desprezo e do ódio. Todos eles maquinam projectos para uma rua mais segura, cada vez mais segura, inteiramente segura, absoluta, utópica e impossivelmente segura – mas não fazem ideia do que fazer para o atingir, e nunca ninguém se tinha queixado de rua nenhuma, fosse qual fosse o número de mortes que estivessem a acontecer em todas as passadeiras de todas as cidades de todos os mundos. A minha rua tornou-se num circo onde comediantes de fato e gravata, ou de farda, debitam regras perante o aplauso da maioria dos vizinhos. E, ao ouvir-lhes os aplausos, também por eles comecei a sentir desprezo e ódio. E pena. (Os meus vizinhos habituaram-se a viver fechados em casa.)
Eu só quero a minha rua de volta. Deixem-na. Dêem-ma, assim como ela está, e eu viverei nela mais feliz do que nunca. (Os meus vizinhos não a querem para viver, é certo; acham que sem políticos, sem engenheiros, sem polícias, sem fardas, sem regras, até os pássaros das árvores podem ser mortais para quem passeia.) Sim, devolvam-me a rua, devolvam-me o mundo, façam testes psiquiátricos em massa a toda a gente, apaguem o que se passou, esqueçam a vergonha do que fizeram, ignorem a vossa própria desumanidade, o modo cínico como se passaram a preocupar com a possibilidade ínfima de morrer na vossa rua – manifestando uma absoluta indiferença por tudo o resto: a pobreza, a doença, a miséria, o sofrimento, a injustiça, a morte nas outras ruas.
Tudo deixou de importar para os meus vizinhos, excepto a ilusão da segurança do “eu”. Sim, devolvam-me a rua e mudem-me os vizinhos, também: quero a minha rua de volta e quero vizinhos novos. E quero correr daqui com esta gente que não me deixa sair de casa, passear, correr, apanhar sol, tomar café, rir alto, abraçar, viver. Quero fazer a vulgaridade que agora chamam perigo, quero fazer a normalidade que agora chamam loucura, quero arriscar ser insultado, proscrito e preso por causa disso.
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Passou mais de um ano. (O Verão está aí, este ano ainda mais espantado do que no ano passado por o deixarem novamente sozinho.) A rua continua em obras, desfeita, tossindo pó e alcatrão. Do mais fundo de mim, um cansaço cresceu. Já não quero que ninguém perceba o logro, já não quero que os responsáveis paguem, já não quero que as pessoas pensem, já não quero proclamar a verdade. Só quero a minha rua de volta.