Segunda-feira, Outubro 2, 2023
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A MIRAGEM DA IMUNIDADE DE GRUPO – João Vasconcelos-Costa

João Vasconcelos-Costa | Professor Catedrático em Medicina, especialista em Biologia Molecular e Virologia

“Gouveia e Melo: vacinando acima de 85% da população “muito provavelmente iremos atingir” a imunidade de grupo”. Não é primeira vez que o almirante se pronuncia sobre o que não sabe. Também o têm feito políticos e comentadores opinativos. Lamentavelmente, também especialistas e até está escrito no atual plano de desconfinamento. Já somos alguns a dizer o contrário, mas estranho o silêncio de alguns epidemiologistas ou virologistas.

Escrevi há tempos: esqueçam a imunidade de grupo! Recordo uma noção básica: para que uma epidemia, ou pandemia, se extinga não é necessário que toda a população esteja imunizada. O vírus deixa de ter condições de propagação quando uma percentagem variável da população lhe é resistente, o que se chama imunidade de grupo (menos simpaticamente, imunidade de rebanho se traduzirmos à letra do inglês herd immunity), mas isto não é fenómeno de tudo ou nada. Segundo o modelo consagrado, SIR, depois o SEIR, a propagação depende de três variáveis: S, o número de suscetíveis (mais E, o número destes suscetíveis que estão efetivamente expostos); I, o número de infetados a cada momento; e R, o número de recuperados). Esta dinâmica não dá um salto brusco num só momento. A diminuição de S, principalmente pela vacinação, não tem efeitos só quando se atinge a imunidade de grupo.

Também é de conhecimento básico da epidemiologia que o limiar de imunidade de grupo (a fração da população resistente) se pode calcular em função do número reprodutivo, R0 (a quantas pessoas um infetado transmite), pela fórmula L=1-(1/R0). Vê-se facilmente que a imunidade de grupo para uma doença altamente transmissível, como o sarampo, com R0 de 16 a 18, exige uma altíssima percentagem de vacinados. No caso do SARS-Cov-2, os cálculos do R0 apontam para uma média de 2,5. Donde L=1-1/2,5=0.6 ou seja 60%. Com um valor de 3, chega-se aos quase 70% de que tanto se falou. É claro que não é necessário que esta seja a percentagem de vacinados. Se admitirmos como hipótese que a recuperação da infeção confere imunidade equivalente à vacinas, temos de entrar em conta também com a percentagem de recuperados que, em Portugal, é de cerca de 9%.

Isto complicou-se com a muito maior transmissibilidade da variante delta. De onde vêm os 85% de que agora tanto se fala? Calculando para um R0 de 6,7. De facto, é difícil calcular o R0 para uma variante que se instala já com a pandemia em pleno desenvolvimento. R0 não é o mesmo que Rt; o R0 refere-se à fase inicial, “natural”, quando ainda não estão em vigor medidas de combate. A estimativa do R0 da variante delta tem sido feita por modelos ou por projeção da sua transmissão a partir da situação atual. Os valores variam muito, entre 5 e 10. Podemos, portanto, aceitar, teoricamente, aquele valor de 6,7.

Mas as coisas são muito mais complicadas. O que sabemos bem das vacinas foi o resultado dos ensaios clínicos, havendo ainda poucos dados pós-vacinais. E os ensaios, que mostram cerca de 95% de eficiência, mediram-na em relação à doença clínica, quando sabemos que a maioria dos casos de covid são assintomáticos mas contribuindo para a transmissão. E, do ponto de vista epidemiológico e da extinção da pandemia, é isto que interessa exclusivamente, não a doença e as mortes. Ora ainda é incerta, com dados muito variáveis, a eficácia das vacinas contra a transmissão, que se sabe bem que também ocorre em vacinados. Com otimismo, aceitemos uma eficácia de 70%. Então, é necessário introduzir esse fator no cálculo do limiar de imunidade de grupo. Não é fácil calculá-lo, mas, muito grosseiramente, vou considerar 1/Et, sendo Et a eficácia vacinal contra a transmissão. Então, o limiar da imunidade de grupo passa a ser L=1/(1-6,7)x(1/0,7)=1,2, ou seja 120% da população! Claro que isto não significa irrelevância da vacinação. Repito que o controlo da epidemia tem uma dinâmica que não começa só com a imunidade de grupo. Toda a vacinação, a qualquer nível, tem sempre grande efeito no combate à infeção, que mais não seja – e é muito! – no combate à doença grave e à mortalidade.

Portanto, esqueçam a imunidade de grupo! Quer isto dizer que não se vai controlar a pandemia? De forma alguma. Como disse, isto não é coisa de zero ou cem. Todas as pandemias, mesmo sem vacinas, se extinguiram, como tal. Como tal, quer dizer com a transmissão epidémica ao nível que tivemos. Como sempre, o vírus vai estabelecer um equilíbrio com a população. Do ponto de vista evolutivo, isto é o lógico pela seleção natural: nenhuma espécie na natureza sobrevive (e a sobrevivência dos espécies é a lei natural) destruindo as suas fontes necessárias de vida. Da mesma forma, um vírus não pode destruir demasiadamente o seu alimento, as pessoas de que depende para a espécie sobreviver. Costumava dizer aos meus alunos que um vírus aparece como uma criança estouvada que parte a louça toda mas que depois amadurece e ganha juízo como adulto.

O que vai acontecer, como já aqui escrevi repetidamente, é que esse equilíbrio não passa pela impossível erradicação do vírus. Ele vai-se tornar endémico, sempre com um número de casos suficiente para a sua manutenção na natureza a baixo nível e provavelmente com menor letalidade, como acontece com muitos vírus. Vamos ter que aprender a viver com ele, protegendo vacinalmente (cada ano?) os mais vulneráveis à doença grave e à morte, como já acontece com a gripe. Alguns países (notoriamente o Reino Unido e Singapura) já adotaram isto como política e muitos outros, como os escandinavos (Suécia incluída desde há muito) estão na prática a fazê-lo, com quase total alívio do controlo (exceto a vigilância epidemiológica e o controlo das viagens), mesmo que não o digam explicitamente.

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